O Comitê Olímpico Internacional (COI) deve lançar em outubro uma pesquisa qualitativa mundial para que atletas e comissões de atletas possam sugerir mudanças à Regra 50. Após pressão global, a entidade se mostrou disposta a relaxar sobre a polêmica norma que diz que “nenhum tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em qualquer evento olímpico, local, ou outras áreas”.

O COI chegou a debater o tema com a sua Comissão de Atletas e pediu a colaboração de outras comissões equivalentes de comitês internacionais e nacionais. E, em meio ao caso de Carol Solberg, que será julgada na semana que vem por ter falado “Fora Bolsonaro”, em uma entrevista, a Comissão de Atletas do Comitê Olímpico do Brasil (CACOB) não organizou consulta nacional. Participou, porém, de enquete da Comissão de Atletas da PanAm Sports, cujo resultado ainda não foi divulgado.

Hoje, os atletas só podem se manifestar livremente nas entrevistas em zonas mistas e no centro de imprensa, sendo proibido os demais locais e ocasiões, como no pódio, cerimônia de abertura e encerramento, vila dos atletas, campo de jogo e etc. Os atletas que quebram a regra estão sujeitos a penas disciplinares analisadas caso a caso. Segundo o COI, ainda na contramão da NBA, NFL e F-1, a norma, que consta da Carta Olímpica, tem como objetivo “proteger a neutralidade do esporte e dos Jogos Olímpicos”. Mudanças podem ocorrer até o ano que vem.

A NBA apoia a livre expressão dos atletas: umas das exigência deles, para o retorno da temporada na "bolha", foi estampar a campanha pelas vidas negras em suas quadras. Foto: Kim Klement / USA TODAY Sports
A NBA apoia a livre expressão dos atletas: umas das exigência deles, para o retorno da temporada na "bolha", foi estampar a campanha pelas vidas negras em suas quadras. Foto: Kim Klement / USA TODAY Sports

Assim, a Olimpíada de Tóquio, adiada para 2021 por causa da pandemia do novo coronavírus, provavelmente testará a Regra 50 se o COI não a alterar de forma considerável ou a abolir. Muitos atletas americanos, incluindo o velocista Noah Lyles, por exemplo, consideraram protestar na Olimpíada, mesmo correndo o risco de perder patrocínios ou receber punição.

Lyles, de 22 anos, é destaque na delegação americana: ele já está correndo mais rápido do que o multicampeão olímpico e mundial Usain Bolt na mesma idade. Foi ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude de Nanjing, em 2014. E, com 19s50, tem o quarto tempo da história dos 200m, prova que tem Bolt como recordista (19s19). Ele vai estrear em Olimpíadas justamente em Tóquio.

Caso Carol Solberg

Em meio a essa discussão mundial, o Brasil pode entrar para a história com o julgamento de Carol Solberg, vice-campeã do Circuito Mundial 2013, campeã do Circuito Brasileiro de vôlei de praia 2017/2018, bicampeã mundial Sub-21 (2004 e 2005) e com extensa lista de pódios em etapas internacionais e nacionais. Após gritar “Fora Bolsonaro!”, em uma entrevista, em etapa do Circuito Brasileiro, ela pode ser punida com multa R$ 100 mil e ser impedida de disputar seis torneios. O julgamento do caso ocorrerá no Superior Tribunal de Justiça Desportiva do vôlei na terça-feira.

Advogado de Carol: ‘Esse julgamento não pode ser visto como questão política e, sim, jurídica’

Isabel Swan, integrante do CACOB, disse que não cabe ao órgão opinar sobre o caso de Carol Solberg e sim, ajudá-la no que for preciso. Ela acredita que os atletas precisam ser mais empoderados e, pessoalmente, se mostrou surpresa com o que a jogadora de vôlei de praia está passando.

Caso Carol Solberg pode ser marco na discussão sobre a liberdade dos atletas para se posicionarem livremente durante as competições. Foto: WANDER ROBERTO / Divulgação
Caso Carol Solberg pode ser marco na discussão sobre a liberdade dos atletas para se posicionarem livremente durante as competições. Foto: WANDER ROBERTO / Divulgação

Ela acha que Carol está sofrendo uma punição desproporcional, uma vez que outros atletas do vôlei se manifestaram politicamente a favor do então candidato à presidência da República e não foram a julgamento (caso de Wallace e Maurício, no Mundial de 2018).

? O intuito da nossa comissão é fazer com que o atleta se sinta acolhido quando necessário e ajudá-lo se for preciso ? diz a velejadora. ? Muitas gestões corruptas do esporte não são julgadas assim e uma atleta é? Estão levando o caso a um nível extremo. Questiono, pessoalmente, esse o nível de punição.

Segundo Isabel, a discussão sobre a liberdade de expressão dos atletas durante as competições é “longa, complicada, recente e necessária”. Por isso ela e o presidente da CACOB, o ex-judoca Tiago Camilo, lamentam a pouca adesão de atletas do país em consulta pan-americana sobre a Regra 50, cerca de 180.

? Esse é um momento de construção, em que é preciso colaborar com o cenário futuro. Fiquei surpreso com o pouco engajamento ? disse Tiago, que, ao lado da presidência e diretoria do COB, tentará ajudar no caso Carol Solberg, no sentido de “amenizar os ânimos”. ? Não existe um lado. Hoje é tudo polarizado. Queremos o bem da atleta e do esporte. E vamos tentar amenizar esse clima.

Entre os atletas do país que participaram da enquete sobre a Regra 50, há uma divisão de opiniões: há os que entendem que é preciso um relaxamento radical da regra e outros que acreditam que o pódio olímpico, por exemplo, deve ser preservado.

? Será que estamos preparados para abolir totalmente esta regra? ? pergunta Isabel, que ainda se questiona como a norma pode ser flexibilizada. ? O que se discute muito é que o pódio é sagrado, tem três medalhistas e nem todos podem querer se manifestar, levantar a mesma bandeira. Mas, quando um o faz, o assunto passa a ser mais importante do que as conquistas em si. Existem muitas situações a serem avaliadas. O atleta precisa de mais empoderamento mas por outro lado há a preservação do momento de neutralidade do esporte.

Isabel contou que tem escutado de atletas em geral que além da questão de permitir que o pódio seja “uma arena de manifestações”, há quem acredite que a extinção da regra pode desproteger uma parte dos próprios atletas.

? Pode acontecer de parte ser obrigada a fazer propaganda política de governos ditatoriais, por exemplo. É preciso pensar em várias situações ? pondera Isabel ? Ao mesmo tempo, os atletas são seres humanos, devem dar suas opiniões e não podem ter sua voz cerceada ? conclui Isabel, para quem a criação de uma zona mista específica para este tipo de manifestação poderia ser uma sugestão.

No mundo

A Global Athlete, uma coalizão de atletas de todo o mundo, pediu a extinção da Regra 50.  E comemorou o inicio do debate: “Mais uma vez, os atletas ficaram juntos e sua voz coletiva pressionou o COI a se posicionar e agora consultar os atletas na Regra 50”, escreveu em comunicado recente. Para a entidade, a postura dos atletas é que a Regra 50 infringe seus direitos de auto expressão, particularmente no auge de suas realizações atléticas e consequentemente, a um raro nível de visibilidade pública. Negar isso por meio da Regra 50, argumentam os atletas, equivale a que o COI mine sua mensagem de mudança inspiradora por meio dos esportes.

Tommie Smith, no centro, e John Carlos, medalhista de bronze, no pódio dos 200m nos Jogos de 1968: percursores Foto: Agência O Globo
Tommie Smith, no centro, e John Carlos, medalhista de bronze, no pódio dos 200m nos Jogos de 1968: percursores Foto: Agência O Globo

Em carta enviada ao COI, o Comitê Consultivo de Atletas do Comitê Olímpico dos Estados Unidos classificou a Regra 50 com uma “opressão aos atletas” e pediu um política de maior liberdade de expressão. Entre os signatários da carta “Os atletas não serão mais silenciados? está John Carlos, que ao lado de Tommie Smith ergueu o punho no pódio dos 200 metros na Olimpíada de 1968. Carlos e Smith, que ganharam décadas de represálias, são vistos como precursores do atual ativismo esportivo que protesta, entre outras coisas, contra o racismo sistêmico e as desigualdades estruturais.

BoicoteQuando as principais ligas esportivas dos EUA resolveram parar em protesto contra o racismo

Atletas do Canadá pedem que o COI estabeleça parâmetros claros para demonstrações aceitáveis, pacíficas e que respeite outros atletas e países, garantindo a não interferência na competição e protegendo contra manifestações prejudiciais, enganosas, discriminatórias ou baseados no ódio. Também pedem clareza em relação às punições.

Na Irlanda, os atletas acreditam que a Regra 50 deve ser reformada e não abolida. Eles dizem que a norma deveria permitir algumas formas de protesto, “contanto que seja feito de forma respeitosa e pacífica e que não prejudique o espírito das Olimpíadas ou que tenha impacto pessoal prejudicial sobre outros atletas e sua experiência olímpica”.

Dos atletas que participaram de uma consulta sobre o tema, 62% indicaram que alguma forma de protesto deveria ser permitida, de preferência fora do pódio (67% dos entrevistados indicaram que não seriam a favor de protestos irrestritos).

Em pesquisa na Austrália, 59,07% dos entrevistados disseram apoiar as manifestações públicas. Sendo que 39,91% acreditam que a auto expressão é válida dependendo das circunstâncias e 19,16%, em qualquer circunstância. A minoria (40,93%) acha que os Jogos não são um lugar para os atletas expressarem publicamente suas opiniões. A pesquisa mostrou ainda que mais de 80% disseram que um protesto no campo de jogo prejudicaria o desempenho ou a experiência dos atletas.

Na Alemanha, os atletas disseram que deveriam poder expressar os valores de uma sociedade livre e democrática a qualquer momento. E que a restrição extensa e abrangente no atual contexto das competições esportivas não é mais aceitável. Em carta, a remadora e membro do comitê de atletas alemão, Marie-Catherine Arnold, disse que a proibição existente vai longe demais e está “em clara contradição com os valores proclamados pelas associações desportivas e não se baseia em requisitos legais nem em princípios jurídicos internacionais”.

Falam que uma adaptação da regra é obrigatória e também pedem mais clareza do que é proibido e quais as punições (metade dos atletas disse não se sentir suficientemente informados).

Os atletas disseram que não querem que declarações extremistas ou que conflitos ocorram no cenário esportivo, mas também, houve um grande consenso de que a defesa dos direitos humanos e os efeitos positivos da liberdade de expressão devem superar o medo de disputas potenciais. “Não podemos negar àqueles que enfrentam a opressão o direito de combatê-la. Pelo contrário, devemos estar ao lado deles.” escreveram.