A pivô Érika de Souza, de 38 anos, atleta da seleção brasileira de basquete, campeã da liga nacional, da americana WNBA e oito vezes na Espanha, nunca teve patrocínio pessoal. Nem de marca esportiva. Outro dia usou as redes sociais para um manifesto: escreveu sobre o fato de que são sempre os atletas do masculino que recebem presentes, principalmente tênis e roupas esportivas. Em um mosaico, Érika, que defende a Castors Braine, da Bélgica, colou as fotos desses “recebidos” e questionou:
? Por que será que isso acontece? É um exemplo bobo mas temos de falar. Caso contrário, vai passar de geração para geração. Tem muito atleta que nunca jogou na seleção, mas recebe material esportivo. A única justificativa que enxergo é que sou mulher. Nunca tive patrocínio pessoal. Até recebi alguns presentes, em algum momento. Geralmente fora do Brasil. Aqui, certeza, era sobra do masculino. Vinha tudo grande e eu nem usava ? conta a pivô, que faz questão de explicar que não quer prejudicar os colegas e, sim, ver as meninas valorizadas. ? Nenhuma jogadora de basquete no mundo ganha o mesmo que seu ‘espelho’ no masculino. Em poucos esportes isso acontece. Essa é uma luta longa e vamos continuar mesmo sendo ignoradas. O basquete feminino precisa ser tratado com mais carinho.
Pioneirismo:Como o judô revolucionou o naipe feminino e hoje passou a ser mais vitorioso que o masculino
Para o publicitário Luiz Lara, sócio-fundador da Lew?Lara\TBWA, do grupo Omnicom, um dos mais importantes do mundo, o que Érika diz enxergar é a miopia da grande maioria das empresas: o potencial esportivo feminino não é explorado como deveria.
Ele usa a famosa lista da Revista Forbes, com os 100 atletas mais bem pagos do mundo, para corroborar sua tese. E usa a lista da Forbes, com os 100 atletas mais bem pagos do mundo, para corroborar a tese. Apenas duas mulheres aparecem: as tenistas Naomi Osaka (29º) e Serena Willians (33º).
? É um fato na medida que a Forbes listou só duas mulheres. Historicamente e em geral, a publicidade e a mídia valorizam mais os atletas masculinos. O esporte sempre foi mais masculino. Sempre digo que se a Hortência tivesse nascido nos EUA seria bilionária. A verdade é que o mercado ainda está míope para o potencial da participação feminina no esporte. Lá nos EUA é igual, mas tem mais volume e dinheiro ? admite Luiz Lara, para quem as marcas devem usar códigos inovadores e não se basear apenas no que é feito para o masculino. ? A Avon pintou os lábios da Marta, com batom roxo, em jogo da seleção brasileira de futebol. Foi a maior sensação. É preciso criatividade, um olhar novo, de mais impacto. Existe um longo caminho para percorrer.
Mesmo as marcas esportivas, que, geralmente investem mais no casting masculino, escorregam com suas escolhidas.
Até o ano passado, a Nike descontava salário de suas patrocinadas quando estavam grávidas e não pagava licença maternidade. A marca mudou sua política após passar vergonha quando a história veio a público nas vozes de atletas como a velocista Allyson Felix, dona de seis ouros olímpicos. A Nike chegou a ser intimida pelo Congresso dos EUA para dar explicações sobre possíveis posturas discriminatórias.
A Nike foi procurada pelo O GLOBO para comentar sobre a diferença de patrocínios para homens e mulheres mas não respondeu. Assim como a Adidas
Depois do desabafo de Érika, foi criada a campanha Levante a Bola Delas, com a meta de sensibilizar as marcas. Paula e Hortência, rainhas de sua época, e que ganhavam salários maiores do que os dos homens, embarcaram também.
A armadora Tainá, de 28 anos, que vai defender o Araraquara na próxima LBF, explica que tanto as atletas quanto a Liga precisam de apoio. Ela foi uma das poucas jogadoras da seleção que ficou no Brasil nesta épca da entressafra (quando as meninas jogam no exterior e depois voltam para a Liga) porque no Araraquara terá carteira assinada, algo que no masculino é usual e no feminino, exceção.
? Queremos mais visibilidade para o basquete feminino em geral. O investimento na modalidade vai proporcionar melhores salários, algo mais igualitário em relação aos homens. Sabemos que não será nada imediato mas temos de começar esta luta agora ? explica Tainá. ? Acho incrível que a gente tenha de falar nisso em pleno século 21. Essa é uma batalha constante.
Além do salário
Mas, a diferença vai além do contra-cheque. Até no rico futebol, as mulheres comemoraram apenas agora uma gerência comandada por mulheres: a Confederação Brasileira de Futebol contratou Aline Pellegrino, de 38 anos, para o cargo de coordenadora de competições femininas, e Duda Luizelli, de 49 anos, como coordenadora de seleções. E a primeira ação de dupla foi igualar as diárias pagas para mulheres e homens.
? O futebol feminino tem 40 anos de desenvolvimento e o masculino, mais de 100. Não sei se em algum momento a gente vai chegar a um ponto de equidade. Hoje, definitivamente, são duas coisas 100% iguais e também 100% diferentes. Acho que temos de olhar para o nosso, desenvolver o nosso, e parar de olhar a galinha do vizinho, ? prega Alinne, que, para fazer crescer a modalidade, terá de começar praticamente do zero. ? Não existe nem um mapeamento da realidade feminina nos diferentes Estados. Estamos em um momento de transformação. A consolidação ainda está um pouco à frente.
Nadadoras do Brasil também usaram as redes sociais para pedir mais apoio. Com salários equiparados, elas querem incentivo na base e estrutura para evitar evasão de atletas e, consequentemente, menos mulheres na seleção adulta. Se a Olimpíada de Tóquio fosse disputada em 2020, só duas mulheres estariam na seleção: Etiene Medeiros e Viviane Jungblut (os índices ainda precisam ser feitos em seletiva que foi adiada).
Poliana Okimoto, de 37 anos, é uma das idealizadoras do projeto apresentado ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) para a reformulação da modalidade (aguarda aprovação financeira). Em seu post nas redes sociais, ela escreveu sobre a falta de mulheres na equipe de natação que viajaria para treinamento na Europa e a mensagem viralizou. Foi o embrião para um movimento com mais de 200 nadadoras em prol de mudanças.
? Isso demonstrou que há uma ferida aberta ? disse Poliana, ex-nadadora e membro da Comissão de Atletas do COB. ? Se o projeto tivesse sido encabeçado por um homem não teria o mesmo apeloO momento é este, agora. A questão não é discrepância em relação a salários, mas sim em reconhecimento e oportunidade. Muitos atletas tiveram mais reconhecimento do que eu, por exemplo, mesmo sem medalha olímpica (ela foi bronze na maratona aquática na Rio-2016).
Segundo Eduardo Fischer, diretor de natação da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), a evasão das meninas na base é o maior problema na renovação da natação feminina. Ele diz que do júnior ao sênior (17 anos para cima), há mais meninos nadando, 63%, do que meninas, 37%. Para ele, ainda há a questão do corpo masculinizado e a falta de técnicas mulheres.
Assim, o programa, para longo prazo, se baseia em três vertentes (desenvolvimento, alto rendimento e gestão).
Briga que deu certo
O que a natação quer fazer hoje foi feito pelo judô há 15 anos. Em 2005, a então técnica do feminino, Rosicleia Campos, revolucionou a categoria quando separou os naipes e passou a olhar apenas para as necessidades do feminino. Montou toda uma estrutura para as mulheres, de treinamento a viagens, e teve respaldo da Confederação Brasileira de Judô (CBJ).
Ela, que atualmente coordena a seleção feminina e treina o time do Flamengo, conta que esta briga foi ferrenha e que muitas vezes se questionou se era isso mesmo que queria fazer. Até hoje mantém a meta de equilibrar as forças porque este é o seu “propósito de vida”.
? A luta continua. O judô ainda é muito machista. Não tem representatividade de mulheres no Norte e Nordeste, por exemplo. Árbitras, técnicas, presidentes de federações, etc. Estamos adiantados em comparação a outros esportes mas ainda pode melhorar muito ? diz Rosicleia, que hoje, após ajudar na conquista de cinco medalhas olímpicas e outras 19 em mundias, tem uma seleção feminina mais forte que a masculina. ? Fiz desta luta o propósito da minha vida.
Outra modalidade em que o feminino é tão forte quanto o masculino é o vôlei. Uma briga que começou com a geração de Jackie Silva, nos anos 80, mas que se manteve viva até, ao menos, 2018, quando a Federação Internacional de Vôlei (FIVB) equiparou as premiações.
? Hoje vivo uma realidade diferente se comparar com outros esportes. Sempre tivemos equiparação tanto de salários quanto de estrutura. Mas sei que isso só acontece hoje porque alguém brigou antes de mim ? fala a ponteira Amanda Campos, de 32 anos, a capitã da equipe do Flamengo, que acredita que é preciso manter a briga e os resultados para que a modalidade feminina mantenha as conquistas fora das quadras.
Etiene, a nadadora de maior expressão da sua modalidade no país (ao lado da maratonista Ana Marcela), acredita que não há falta investimento na natação (hoje, todo orçamento da CBDA é gerido pelo COB). Ela tem certeza que esta é uma questão de planejamento e volta ao banco da escola para explicar o bê-a-bá para quem ainda não entendeu:
? Se estou mal em matemática e bem em português, preciso de aula de reforço em matemática. É como posso igualar os desempenhos. É preciso reforçar a natação feminina. Recentemente tivemos um projeto que se encerrou com a Olimpíada do Rio. Mas agora, nossa mobilização é grande, nunca tinha visto isso ? comemora a atleta, que sabe que esse movimento, se consistente, só dará frutos lá na frente.
Mas ela não se importa. Assim como as demais atletas e gestoras que querem corrigir a miopia dos investidores e perguntam: Será que é preciso desenhar?
Fonte: O Globo