Na última segunda-feira, o lateral Fagner usou suas redes sociais para denunciar uma mensagem enviada via internet a seu filho de 10 anos. “Nós vamos invadir a sua casa hoje, é melhor o seu pai não aparecer por aí…? diz trecho do texto ao garoto. Não foi uma situação inédita para o jogador do Corinthians. Em 2013, durante passagem pelo Vasco, ele ouviu de um torcedor que, se fosse para o Flamengo, como se especulava à época, “era melhor não andar mais na rua?. O episódio ocorreu em uma das muitas invasões a São Januário na última década. Saber conviver com ameaças virou pré-requisito para ser atleta no país. Afinal, em que pese os casos serem muitos, o futebol brasileiro não senta para encontrar soluções.
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Quem conhece o dia a dia do esporte tem sugestões. Presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, Alfredo Sampaio acredita que já passou da hora de as delegações entrarem e saírem dos aeroportos sem passar pelo saguão principal. Outra proposta, mais drástica, é a perda de pontos em caso de atos violentos contra membros das agremiações.
? O maior temor de um torcedor ou dirigente não é perder mando de campo e dinheiro. É perder ponto e a possibilidade de descenso. Se tivermos um rigor nessa linha talvez esse torcedor, que diz agir em nome do seu amor pelo clube, vá refletir ? argumenta.
Temor de retaliação
Quando torcedores invadiram o treino do Figueirense com rojões e agressões, há duas semanas, Sampaio recebeu mensagens de atletas dos clubes do Rio. Indignados, queriam que uma ação fosse tomada. O mesmo ocorreu em outros estados. Representante nacional da classe, a Fenapaf organizou um protesto que envolveu os 20 clubes da Série A do Brasileiro. Nos jogos da 9ª rodada, disputados há dez dias, os jogadores cruzaram os braços por dez segundos após o pontapé inicial. Foi o grito de socorro de uma classe que evita falar publicamente sobre os casos de violência.
? Eles têm muita preocupação com a família. Eu vejo esse silêncio como medo de uma retaliação maior. Porque é complicado. Tem uns 50 caras brigando contigo e você não sabe se um deles é bandido ? diz Sampaio.
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A Fenapaf acionou a CBF e o governo federal. Ao mesmo tempo, pediu que os sindicatos façam o mesmo nas esferas estaduais. O entendimento do órgão é de que a integridade dos envolvidos no esporte precisa passar a ser tratada no mesmo âmbito da segurança pública.
? Isso nunca foi feito no passado. Agora, estamos aguardando a reação ao nosso chamamento. Precisamos encontrar uma solução, não culpados ? diz Felipe Augusto Leite, presidente da Fenapaf. ? Culpados somos todos nós, que fizemos essa legislação branda.
A Polícia Civil de Santa Catarina investiga a invasão de 15 dias atrás. Até agora, ninguém foi preso. Dois atletas deixaram o Figueirense: o lateral Lucas, que anunciou aposentadoria, e o atacante Pedro Lucas, que se transferiu para o CSA. O GLOBO tentou contato, mas nenhum deles quis falar. Um dos poucos a se manifestar foi o goleiro Sidão:
“Vivemos em um país onde você realiza seus sonhos e causa transtornos para outras pessoas, que acham que têm direito de te agredir por isso?, desabafou por meio de suas redes sociais.
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Ao longo das últimas décadas, cenas como estas se tornaram comuns. A cada fase ruim, a frustração da torcida é canalizada nos jogadores e treinadores. Mesmo que aquele momento não seja consequência das ações deles.
? Temos um contexto de circulação tremenda no mercado da bola. Você não vê um atleta construindo identidade no clube. Eles estão hoje aqui, amanhã em outro. Muitas vezes no rival ? afirma Flávio de Campos, professor da pós-graduação em História Sociocultural do Futebol na USP. ? Então se tornam ainda mais vulneráveis a esta descarga de frustração. Porque os torcedores olham para eles e dizem “o clube somos nós?. Reivindicam para si esse pertencimento. E os atletas viram ?mercenários?.
Dano à saúde mental
Quando o Flamengo treinava na Gávea, os períodos de maus resultados em campo eram marcados por invasões aos treinos. Revelado no clube, Athirson lembra não só destes episódios como das ameaças que recebeu por telefone.
?Já tive que contratar segurança até tudo se acalmar. Ligavam dizendo que se eu não jogasse com raça iam agredir a minha família na rua ? recorda o ex-jogador. ? Quando invadiam o treino, iam ao estacionamento e quebravam nossos carros.
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Por trás dessas atitudes, está a ideia de que, sob pressão, o desempenho dos jogadores tende a melhorar. Um mito compartilhado não só por torcedores, mas também por alguns dirigentes.
? Como o torcedor entra no clube? Não faz sentido. Se tem portões, muro de quatro metros? É claro que os jogadores se questionavam (sobre o envolvimento de cartolas). Mas não posso afirmar nada ? continua Athirson.
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Se não há garantia de ganho de performance, outra consequência é certa: o dano à saúde mental. De acordo com estudo da Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol, 38% dos atletas apresentam sintomas de depressão e/ou ansiedade.
? É importante dizer que depressão não tem a ver com tristeza. É a diminuição da concentração de serotonina e dopamina no cérebro. Gritar na cara de alguém faz a pessoa produzir mais cortisol, que é um inibidor desses dois hormônios. Ou seja, está piorando a vida dela. ? afirma o professor Alberto Filgueiras, coordenador do Laboratório de Neuropsicologia Cognitiva e Esportiva, da Uerj. ? Ser atleta de futebol é um risco para a saúde mental.
Fonte: O Globo