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Karaokê para um? O avanço do entretenimento ‘solo’ no Japão



Uma década atrás, muitos japoneses ficariam tão envergonhados de serem vistos comendo sozinhos no refeitório da escola ou do trabalho que optariam por fazer a refeição escondidos no banheiro. Passar a impressão de “não ter amigos” era tão inaceitável que levou a um hábito conhecido como benjo meshi – “almoçar no banheiro”.

Foto: BBC News Brasil

Mas muita gente acredita que o Japão está mudando bastante. Uma delas é Miki Tateishi, que trabalha como garçonete no Bar Hitori, em Tóquio, um estabelecimento acolhedor no bairro boêmio de Shinjuku, voltado para quem quer beber sozinho.

O bar, inaugurado em meados de 2018, representa uma oportunidade rara no Japão de sair e beber sem estar acompanhado. E o negócio está indo bem. Em vez de se esconderem no banheiro, as pessoas estão se aventurando a sair e aceitando a ideia de serem vistas sozinhas.

“Algumas pessoas curtem ficar sozinhas, outras querem construir uma nova comunidade”, diz Tateishi.

Ela acredita que a política do bar de só permitir a entrada de pessoas desacompanhadas favorece os clientes em potencial que, de outra forma, poderiam se sentir desencorajados por grandes grupos ou pela clientela habitual.

O ambiente descontraído comporta cerca de uma dúzia de pessoas, que podem puxar papo entre si. A bebida abundante e o espaço pequeno facilitam as interações.

“Acho que isso é raro”, avalia Kai Sugiyama, de 29 anos, que trabalha para uma empresa de manufatura e é um dos frequentadores do bar.

“Sinto que os japoneses vivem uma vida em grupos, então as pessoas querem fazer coisas com outras pessoas. Não temos muito a cultura de fazer as coisas sozinhos.”

No entanto, o Bar Hitori – hitori significa “uma pessoa” – não é de forma alguma o único exemplo de como as empresas estão mudando para acolher indivíduos que querem fazer as coisas sozinhos.

De restaurantes a noitadas e viagens, uma série de opções voltadas especificamente para esse público surgiram nos últimos anos. É efeito do movimento conhecido como “ohitorisama“: de pessoas que optam audaciosamente por fazer as coisas sozinhas, e que se dane a opinião dos outros.

O poder de estar sozinho

Em tradução livre, ohitorisama significa algo como “festa de uma pessoa só”. Se você der uma busca por essa hashtag no Instagram em japonês, vai se deparar com milhares de fotos de pratos de comida em restaurantes, salas de cinema, acampamentos ou até mesmo de meios de transporte destacando aventuras individuais.

Nos últimos dois anos, principalmente, cada vez mais gente está declarado seu amor pelo ohitorisama, tanto na imprensa quanto nas redes sociais.

Uma inovação recente é o “hitori yakiniku“. O yakiniku, que quer dizer “carne grelhada”, geralmente é preparado em uma grelha colocada no centro da mesa do restaurante, onde um grupo de pessoas costuma se sentar para cozinhar junto diferentes tipos de carnes. Mas na versão ohitorisama, o único que grelha (e come) toda essa carne é você.

Até mesmo o karaokê está adotando uma versão solo – o que representa uma enorme mudança no clássico passatempo japonês.

“A demanda por karaokê individual aumentou, correspondendo a 30% a 40% [de toda a clientela de karaokê]”, diz o gerente de vendas Daiki Yamatani, relações públicas da empresa de karaokê solo 1Kara, em Tóquio.

No Japão, os karaokês estão por toda parte, geralmente em edifícios altos com vários andares de salas de karaokê privadas, concebidas para comportar grupos de diversos tamanhos. Mas a demanda de cantores amadores solitários tem aumentado e, assim, a 1Kara trocou as salas grandes para grupos por estúdios individuais do tamanho de cabines telefônicas.

Sair à noite e para beber são atividades tradicionalmente compartilhadas com colegas ou amigos no Japão, enquanto a cultura gastronômica prevê fazer refeições acompanhado. Portanto, o movimento ohitorisama representa uma mudança cultural importante.

Mas o que está motivando essa mudança e por que exatamente ela é considerada tão significativa?

Pressão social

Em muitos países, fazer as coisas sozinho pode não parecer tão surpreendente. Por exemplo, em dezembro, a atriz americana Christina Hendricks postou fotos de seu #solodate em um show. A atriz britânica Emma Watson declarou recentemente sua paixão pela vida de solteira e por ser “sua própria parceira”.

As editoras ocidentais escreveram guias para beber sozinho, enquanto se lê um livro em um bar, ao passo que viajar sozinho alavancou a carreira de inúmeros influenciadores nas redes sociais.

Mas em um país onde a conformidade e o ato de fazer parte de um grupo sempre foram altamente valorizados, é um grande acontecimento.

Os 125 milhões de japoneses estão amontoados em um arquipélago um pouco menor que a Califórnia – e quatro quintos desse terreno são montanhosos e inabitáveis. Espaço sempre foi algo precioso no país e, por isso, a ênfase foi colocada na coletividade e na integração com outras pessoas.

“O Japão é um país pequeno, e todos precisam coexistir”, diz Motoko Matsushita, consultora do instituto de pesquisa econômica Nomura Research Institute, com sede em Tóquio.

Ela estuda o movimento ohitorisama – das suas origens ao seu futuro.

“Precisamos focar em viver juntos em harmonia, e é por isso que a pressão social [para fazer as coisas em grupo] é alta.”

Matsushita acredita que a ascensão das redes sociais – com o número de amigos e curtidas ditando o valor de alguém – levou a uma pressão social sufocante, que estigmatizou o fato de ser visto sozinho. E, na opinião dela, o surgimento do ohitorisama é justamente um dos ”efeitos colaterais” desse fenômeno.

No caso do benjo meshi, o sociólogo que cunhou o termo em 2008, Daisuke Tsuji, da Universidade de Osaka, no Japão, descobriu que os estudantes comiam no banheiro não porque não gostavam de comer sozinhos, mas porque não queriam que seus colegas pensassem que eles não tinham com quem compartilhar uma refeição.

Mas Matsushita acredita que esse comportamento está mudando – segundo ela, a pressão social negativa sobre fazer coisas sozinho diminuiu.

“‘Você tem que se casar, tem que ter filho’, essas pressões sociais estão diminuindo”, diz.

Ela cita uma pesquisa que conduziu com 10 mil pessoas, de 2015 a 2018, e revelou um aumento de comportamentos voltados à independência e à “flexibilidade familiar”.

Menos gente achava, por exemplo, que as pessoas deveriam se casar e ter filhos, enquanto mais gente acreditava que não há problema em se divorciar, mesmo que você tenha filhos. Entre os casais, mais indivíduos também achavam que não há problema em guardar um segredo do parceiro.

Uma ‘sociedade supersolo’

O fato é que a sociedade japonesa está passando por uma mudança demográfica drástica. A taxa de natalidade está caindo: no ano passado, apenas 864 mil bebês nasceram – o menor número de nascimentos desde que os registros começaram, em 1899.

O número de pessoas que moram sozinhas está aumentando: passou de 25% em 1995 para mais de 35% em 2015, segundo dados do censo. O declínio nas taxas de casamento está contribuindo para esse aumento, mas também o fato de mais idosos estarem se tornando viúvos.

Como resultado, o comportamento dos consumidores está mudando – e a forma como as empresas atendem a essa nova demanda também.

“O poder de compra dos solteiros não pode mais ser ignorado”, diz Kazuhisa Arakawa, pesquisador da Hakuhodo, uma das maiores empresas de publicidade do Japão.

Autor de livros sobre a economia do que chama de “sociedade super-solo”, ele estima que 50% da população com 15 anos ou mais estará morando sozinha até 2040.

“Acredito que o mercado não crescerá sem capturar esses clientes solos”, diz ele.

Erika Miura, uma jovem de 22 anos que trabalha na área de tecnologia, é experiente na arte do ohitorisama. Sentada no Bar Hitori, ela conta que se sente um peixe fora d’água no seu círculo de amigos por querer fazer tantas coisas sozinha.

“As pessoas ficam desanimadas com a ideia, mas eu vou esquiar sozinha”, diz ela.

Ela também costuma ir ao cinema e ao karaokê sozinha, porque acha que tem mais liberdade. E afirma que há muitos estabelecimentos “solo” em Tóquio.

Go Yamaguchi, por sua vez, cliente do 1Kara, diz que prefere ir ao karaokê sozinho do que com os amigos porque não precisa esperar a sua vez.

“Eu também ficaria envergonhado se não conseguisse cantar bem”, acrescenta.

“Posso cantar o que eu quiser quando estou sozinho.”

O ohitorisama oferece ainda oportunidades para aqueles que fazem parte de uma unidade familiar “tradicional”, dizem os especialistas. A pesquisa feita por Arakawa em 2018 mostrou que uma em cada três pessoas casadas pratica atividades solo, como viajar sozinha ocasionalmente. Matsushita, que é casada e tem filhos, concorda:

“Às vezes, eu gosto de ir ao karaokê sozinha.”

Quando se trata de idosos que vivem sozinhos, Matsushita diz que esse grupo – especialmente as mulheres – tem uma “resistência psicológica” a ser visto sozinho. Mas ela acredita que isso pode mudar, à medida que a geração mais jovem quebra esse tabu. E especialmente porque os profissionais de marketing que promovem serviços individuais veem os aposentados como público-alvo, considerando que têm tempo e dinheiro.

‘O mundo está mudando’

É evidente que não é apenas o Japão que está passando pelo tipo de transformação social que contribuiu para o ohitorisama. À medida que as taxas de natalidade caem, as pessoas se casam mais tarde, e as populações envelhecem, muitos países estão vendo um aumento da vida de solteiro.

A Euromonitor International, empresa independente de pesquisa de mercado com sede em Londres, divulgou um estudo no ano passado em que estima um crescimento recorde de 128% no número de pessoas morando sozinhas em todo o mundo entre 2000 e 2030.

“Uma ‘sociedade supersolo’, caracterizada por jovens que nunca se casam e idosos que acabam ‘solteiros’ novamente depois de ficarem viúvos, será o futuro de todos os países, não apenas do Japão”, diz Arakawa.

“Não é mais praticável focar um negócio apenas em famílias.”

É claro que em países onde as pessoas estão acostumadas a fazer as coisas sozinhas – como sair para jantar, beber ou viajar -, o fenômeno das “festas solo” será menos pronunciado. Mas no Japão, sua evolução relativamente rápida se tornou um tema quente.

Arakawa acredita que a maioria de seus colegas japoneses são naturalmente independentes.

“Seria errado supor que existem dois tipos de pessoas: aquelas que se sentem bem com elas mesmas, e aquelas que não”, avalia.

“A maioria dos japoneses gosta de agir de forma independente.”

Ele descobriu que 50% dos frequentadores de shows ou festivais de música iam sozinhos, e acabavam conhecendo pessoas novas com interesses em comum.

Podemos dizer então que o ohitorisama prosperou diante de uma combinação de mudanças demográficas e da adoção de uma postura mais flexível em relação ao estilo de vida.

“Há apenas dez anos, eles falavam em ‘almoço no banheiro'”, afirma Matsushita. “Mas, 10 anos depois, temos tantos serviços [solo]. As pessoas tendem a pensar de forma positiva sobre ficar sozinhas.”

No Bar Hitori, a garçonete Tateishi também conhece bem os meandros do ohitorisama. Afinal, antes de trabalhar no bar, ela era cliente.

“Para as pessoas que costumavam apenas ficar em casa, pode representar uma transformação, ao construírem uma comunidade fora de casa”, diz ela.

“Elas veem que o mundo está mudando.”

*Com colaboração de Yoko Ishitani.

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Fonte: Terra Saúde


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