O Flamengo sabia das condições precárias do alojamento do CT da base que pegou fogo e nada fez desde 2018, conforme troca de e-mails entre ex-funcionários do clube e documentações. As inconformidades nas instalações elétricas dos ar-condicionados foram apontadas em relatório finalizado em março de 2019, pela empresa Anexa.

No parecer enviado à atual diretoria do clube, ao qual O GLOBO teve acesso, são listadas uma série de irregularidades que permaneceram no contêiner após o incêndio, como provam fotos feitas no local. Como o alojamento seria retirado para a inauguração do novo módulo profissional, não houve intervenções.

A íntegra do documento

“As irregularidades abaixo não serão tratadas no momento, pois, conforme informação, o local será demolido e substituído por novas instalações até o final do ano de 2018, deixando claro que caso haja fiscalização e autuação o argumento mesmo que evidente não justifica a irregularidade, ficando a critério do órgão fiscalizador a penalidade ou intervenção”, diz uma das trocas de e-mails, publicadas inicialmente pelo UOL.

Leia mais: Defensoria diz que documentos são prova de responsabilidade do clube

Os documentos detalhados no relatório foram obtidos pela empresa com autorização do próprio Flamengo, que encomendou vistoria no CT ainda em fevereiro do ano passado.

Desfecho:MP confirma que indiciados responderão de forma culposa

O relatório ficou pronto em março e nunca foi divulgado. A Anexa exigiu acesso irrestrito às rotinas administrativas do Flamengo para emitir o parecer técnico sobre a possível causa do incêndio, entre e-mails, documentos e profissionais do clube.

Recentemente, Flamengo e Anexa romperam relações e brigam na Justiça. A empresa usou os relatórios para provar que prestava serviço para o clube, embora este alegue que pagou um valor e não teve entregue o esperado. Tudo isso consta no processo da interpelação criminal movido pelo Flamengo, que não pediu segredo de justiça.

? Na notificação da rescisão o presidente do Flamengo escreve que o servico sequer começou a ser prestado. Estamos desmentindo a notificação do Flamengo e provando a quebra contratual sem justa causa ? informou o advogado da empresa, Carlos Alberto Almeida Moreira da Silva.

As irregularidades

 

Na documentação apresentada pela Anexa não havia nenhuma emissão de anotação de responsabilidade técnica (ART), obrigatória pela Lei 6.496/77 para as atividades técnicas de projeto e execução. Também não havia um aceite técnico referente às instalações contidas nos módulos do Ninho do Urubu.

Reprodução de imagem em relatório sobre o CT Foto: Reprodução
Reprodução de imagem em relatório sobre o CT Foto: Reprodução

O que a Anexa verificou foi que, dias antes da tragédia houve um chamado do Flamengo para um suposto incêndio em um dos equipamentos de ar. O clube chamou o senhor Edson Colman, conhecido como “Geladinho”, da empresa Colman Refrigeração. Ele relatou manutenção na fiação interna do aparelho, com substituição de algumas conexões. O aparelho danificado foi reinstalado no dia 7 de fevereiro, um dia antes da tragédia. Segundo a vistoria nos componentes que sobraram, os aparelhos de ar condicionado funcionavam aproximadamente 24 horas por dia.

Conforme a troca de e-mails entre os ex-funcionários Luiz Humberto, gerente de administração, e Marcelo Helmann,  diretor executivo da pasta, em 10 de maio de 2018 houve visita ao alojamento do técnico de segurança do Flamengo, acompanhado do profissional chamado apenas de Adilson, da empresa CBI. O senhor Adilson informou, segundo relatório da Anexa, “que a situação encontrada no módulo da base era de alta relevância e grande risco”.

Relembre: funcionários que trocaram e-mails alegavam desconhecimento

Há ainda destacado os pontos emergenciais, enviado pelo funcionário do departamento pessoal Wilson Ferreira ao gerente de administração do Flamengo, Luiz Humberto Costa Tavares, à gerente de recursos humanos Roberta Tannure e a um funcionário identificado como Douglas Silva Lins de Albuquerque em 11 de maio: “quadro elétrico (poste ao lado do refeitório), disjuntores e fiação no jardim, quadro elétrico atrás do alojamento da base”.

Um ano depois: O que diz o Flamengo sobre os responsáveis pelo incêndio no Ninho do Urubu

Uma proposta de manutenção foi enviada a Flamengo ainda em maio de 2018 com os seguintes serviços: instalar um quadro de proteção, com os disjuntores e cabos dimensionados para a carga apresentada. Segundo vistoria, os cabos conectados aos disjuntores estava mem desacordo com as norma técnicas, pois eram inferiores à espessura. Foi constatado ainda que a corrente de projeto era maior que a capacidade do condutor instalado, desconsiderando as ligações irregulares, ou “gambiarras?. Também não havia proteção de um fio terra no circuito principal do módulo.

Luto: Famílias dos Garotos do Ninho contam sobre o ano de luto

“Para surpresa, em inspeção realizada no local na data de 19/02/2019, verificamos que o objeto do contrato 15.1/18-PA, não havia sido realizado e as instalações continuavam as mesmas de quando a inspeção fora realizada, em registros fotográficos antes e depois do evento que culminou na morte de 10 adolescentes. Podemos perceber que o serviço que a empresa CBI foi contratada, não foi realizado, mantendo o mesmo alto grau de risco antes verificado. As tais “gambiarras? elucidadas na proposta, ainda estavam claramente no local, conforme apresenta a imagem”, diz relatório da Anexa.

Sensibilidade: Famílias vão ao Ninho do Urubu para homenagens, mas são barradas pelo Flamengo

Mesmo assim, o contrato foi dado como concluído e a última parcela referente à liquidação total foi paga no início de outubro de 2018 pelo Flamengo. Para o serviço, não foi emitida ART, de acordo com a Lei 6.496/77 e não háregistro formal de aceite de obra por parte do clube.

Luta:Como uma tragédia familiar levou Bruna e Diego, do Flamengo, a lutar pela prevenção ao suicídio

As vítimas do incêndio no Ninho do Urubu Foto: Reprodução
As vítimas do incêndio no Ninho do Urubu Foto: Reprodução

O Flamengo informou que não vai se pronunciar.

O ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello enviou comunicado:

 “1- Como venho falando desde o início, esse tipo de assunto não chega à presidência do clube e o e-mail em questão reforça isso. Em geral são resolvidos internamente, dentro de suas pastas, nos escalões mais baixos e repassados ao financeiro em seguida para pagamento.

2- Ainda que eu não tenha tido conhecimento dos fatos, pelo que a matéria do UOL dá a entender, apesar do relatório inicial, o Flamengo contratou e pagou o reparo necessário. Entendemos então que o assunto deve ser apurado.

3- Como visto na reportagem, o Flamengo tem uma rede interna de e-mails. Eles podem ser rastreados e permitir uma visão melhor sobre todos os fatos que cercam essa tragédia. É algo que tenho falado desde o início e me espanta que até hoje não tenha sido feito em nenhum momento. Tenho total interesse em que todos os e-mails trocados no clube sejam divulgados”.