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Após salvarem vidas, hospitais de campanha viram impasse para o pós-pandemia



BRASÍLIA – A expansão da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia da covid-19, marcada pela aposta em hospitais de campanha, levanta preocupações em gestores de saúde e especialistas sobre como atender a população após a crise sanitária. Segundo dados de Estados e municípios, ao menos 79 unidades foram abertas no País e 19 já foram fechadas. Algumas tiveram papel relevante no enfrentamento da doença, especialmente no começo do surto. Em outros locais, porém, os hospitais estão vazios ou desativados antes mesmo de receber pacientes.

Com ajuda dos novos hospitais temporários, o número de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) na rede pública do País saltou de 22,8 mil, em janeiro, para 33,7 mil, em julho. A expectativa de gestores públicos e entidades médicas, porém, é de um forte recuo na oferta – ainda desconhecido — nos próximos meses. A dúvida de secretários de saúde e especialistas é sobre como dar conta da demanda reprimida por exames, operações e tratamentos interrompidos na pandemia. Além disso, não há garantias sobre quando a covid-19, ainda descontrolada no País, irá deixar de exigir esforços do SUS.

Uma das falhas reconhecidas pelos próprios gestores foi a construção descoordenada de hospitais de campanha, estruturas, na maioria dos casos, com prazo para serem desmontadas. Além disso, a contratação de alguns deles acabou virando motivo de suspeitas de irregularidades.

A construção de unidades no Rio faz parte da investigação que culminou no afastamento do governador Wilson Witzel (PSC). No Estado que se tornou símbolo da má gestão na pandemia, a proposta era montar sete hospitais de campanha por R$ 770 milhões, em contratos questionados com uma organização social (OS). Dois foram entregues, com desembolso de R$ 256 milhões. Outros dois foram montados com apoio da Rede D’or. Mesmo sem pacientes desde o fim de julho, unidades do Maracanã e Nova Iguaçu seguem abertas por decisão judicial. Já leitos instalados em São Gonçalo atenderam apenas 37 pessoas e foram desativados.

O ideal era expandir a rede já estabelecida de atendimentos ou requisitar espaços da rede privada, na avaliação do pesquisador Daniel Soranz, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ele afirmou que o Estado abriu mão de prover recursos humanos para locais que já possuíam leitos e focou em hospitais provisórios sem qualquer base científica para a estratégia. “Nunca foi mais rápido e mais barato montar uma estrutura em tenda, sendo que você tem uma estrutura em um hospital que só precisava de recursos humanos para ser ativada. Nunca na história do SUS tinham feito hospital de campanha de alta complexidade em estruturas temporárias”, disse.

O Ministério da Saúde aponta que 25,86 mil leitos de UTI ficaram à disposição de pacientes da covid-19 na crise. O número considera, além de espaços construídos, as enfermarias que passaram por adaptações e unidades da rede privada somadas ao SUS, entre outros casos. Não há uma conta exata de quantos leitos estão em hospitais de campanha.

Responsável por coordenar o sistema único, a pasta também não estima quantos destes espaços devem seguir na rede de atendimento após a crise. A pasta afirma que o assunto ainda é debatido em grupo de trabalho que reúne União, Estados e municípios. Em alguns locais os leitos criados na pandemia ficaram vazios. O governo de Minas concluiu em abril um hospital de campanha em Belo Horizonte. A inauguração foi em julho, mas até hoje nenhum paciente foi atendido. Em Toledo (PR), o hospital, pronto também em abril, fechou as portas em 31 de agosto, sem ter recebido paciente algum. Uma unidade deste tipo em Cascavel (PR) foi desativada após cerca de três semanas de atividade. Nos três casos, os motivos foram questões burocráticas ou simplesmente falta de demanda.

Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e chefe da pasta no Maranhão, Carlos Lula afirma que os hospitais de campanha eram o “plano C” no Estado. No auge da crise, no entanto, com leitos privados lotados e sem tempo para ampliar a própria rede, quatro unidades tiveram de ser construídas. “Acho que o erro no Brasil foi adotar hospital de campanha como primeira solução. Tinha de ser a última. Aproveitar ao máximo leitos da minha rede (pública e privada).”

Casos de câncer, diabete e hipertensão preocupam

A expectativa é de que o SUS se depare com pacientes que interromperam cuidados de outras doenças, após a pandemia. Em pesquisa do Instituto Oncoguia, 59% dos pacientes da rede pública relataram algum efeito da pandemia sobre tratamentos de câncer em março e abril. O percentual caiu, no fim de julho, para 41%. O número de novos pacientes em tratamento foi quase 30% menor do que no ano anterior, diz o instituto.

“Temos um represamento violento de pessoas com diabete e hipertensão, por exemplo, que deixaram de ir a hospitais. E isso vai explodir agora. Era um câncer que poderia ser curado e que agora vai ter que ser operado. Precisamos de uma política de redução de danos, tentando aproveitar o que sobrou e fazendo as devidas investigações”, afirmou Elda Bussinguer, pós-doutora em saúde coletiva.

Mesmo com o crescimento na oferta de leitos de UTI no período de crise, os esforços não serviram para colocar a rede pública dentro de patamares mínimos. A Associação de Medicina Intensiva Brasileira preconiza que deve haver entre um e três leitos de alta complexidade para cada dez mil habitantes.

O sanitarista Leonardo Mattos, pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio (UFRJ), aponta que o cenário do SUS será muito “heterogêneo” após a pandemia. “Já havia uma deficiência histórica. Será muito bom para Estados que conseguirem aproveitar a expansão como legado. Mas o que a gente tem visto é que a situação pode ser até pior em alguns lugares, como no Rio. Além de aproveitar mal o recurso, houve vários problemas de gestão, que deixam o sistema de saúde ainda mais precário no Estado”, afirmou.

Especialistas apontam omissão do Ministério da Saúde

Os especialistas convergem ao apontar omissão do ministério no processo de expansão da rede do SUS na pandemia. Só em junho a pasta publicou portaria com critérios para instalação de hospitais de campanha, apontando que a estrutura deve ser a última opção. Nesta data a fase aguda da pandemia já havia passado em alguns locais do Norte e Nordeste. “Não há dúvida sobre omissão do ministério. Optou-se por transferir dinheiro aos Estados e municípios para cada um se virar do seu jeito, disputando o mesmo mercado”, aponta Mattos.

“Faltou coordenação nacional? Faltou de modo geral no enfrentamento da pandemia”, avalia o presidente do Conass e secretário do Maranhão. “Como não houve debate, cada um fez do seu jeito.”

Para Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o ministério “não preparou o Brasil” para enfrentar a pandemia. “Teve um orçamento extraordinário criado para organizar a resposta. Governo federal foi incompetente e omisso”, afirmou ele, que já foi secretário executivo do ministério.

Em 21 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, enviou à Saúde, lista de 81 imóveis da União que poderiam ser usados como hospitais de campanha. A resposta chegou à equipe mais de três meses depois, em 31 de julho, quando o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, respondeu sem indicar que precisaria usar algum deles.

O governo federal construiu apenas um hospital de campanha, em Águas Lindas de Goiás. A obra de R$ 10 milhões foi um pedido do governador Ronaldo Caiado (DEM), aliado do presidente Jair Bolsonaro e do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O presidente visitou as obras do hospital goiano em 10 de abril. Voltou ao local em junho, para inaugurá-lo, mais de 40 dias após a conclusão do prédio.

Hospital de campanha construído pelo governo federal em Águas Lindas (GO) para pacientes com coronavírus
Hospital de campanha construído pelo governo federal em Águas Lindas (GO) para pacientes com coronavírus

Foto: Divulgação / Estadão

Sete meses após o decreto de emergência de saúde pública nacional, há ainda unidades em construção. O governo do Distrito Federal fez dois hospitais de campanha e está construindo outros dois. Um deles, o de Ceilândia, tem 65% da obra concluída. Para o pós-pandemia, o governo local diz que vai transformar a unidade em um Hospital Materno Infantil.

Questionado sobre a falta de uma coordenação em relação à ampliação dos leitos, o Ministério da Saúde repetiu o que tem dito o presidente quando confrontado sobre o enfrentamento da pandemia no País. “Cabe informar que, em 15 de abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a competência de definição das ações locais para o combate à pandemia é dos Estados e municípios. Coube ao Ministério da Saúde dar toda a assistência possível para salvar vidas, o que tem feito até hoje”. A decisão da Corte, no entanto, apenas reconhece a autonomia dos governos locais para tomar medidas de combate à doença, não eximindo o Executivo federal de também agir.

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Estadão

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Fonte: Terra Saúde


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