Desde 1989, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível. Mas não é fácil prová-lo e quem o denuncia no esporte brasileiro está sujeito a colocar a carreira em risco. O GLOBO conversou com diversos atletas negros, que relataram não só preconceito e assédio moral desde o início da vida esportiva, mas também as diversas pressões que sofrem. Como afirma Diogo Silva, ex-atleta olímpico do taekwondo, é preciso “transferir o olhar da formiga ao formigueiro?, ou seja, pressionar instituições para que mudanças efetivas ocorram, em vez de cobrar apenas do atleta, muitas vezes já fragilizado

“Eu preciso trabalhar e eu quero trabalhar”. A frase de Angelo Assumpção, dita ao GLOBO, em entrevista por telefone nesta última semana, é mais um grito de indignação e revolta do ginasta negro que, segundo ele, foi dispensado pelo Esporte Clube Pinheiros, em novembro, após 16 anos, por denúncias de racismo que ele levou à direção. Ângelo, atleta que defendeu a seleção e ouro na Copa do Mundo em 2015, na etapa de São Paulo, está há cerca de dez meses sem contrato e a família iniciou uma vaquinha virtual para custear suas necessidades básicas.

? Quando o atleta se posiciona, diz que não aceita mais as injúrias racistas, que é crime, é ele quem é afastado, quem perde o emprego e quem se queima no meio. É aquilo: ‘Não queremos um problema aqui’ ? declara Ângelo, quinto colocado no salto e sexto no solo no último Campeonato Brasileiro de Especialistas.

Ele conta que levou à direção do Pinheiros questões que aconteciam “dentro do ginásio”, do racismo recreativo (o crime transvestido de piada) às agressões diretas.

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Disse que tentou dialogar várias vezes com os envolvidos e que, depois de ter sido dispensado, voltou a procurar o clube para entender o motivo pelo qual fora preterido. Contou ainda que procurou outros clubes para voltar a treinar e para se posicionar diante do ocorrido, uma vez que, no seu entender, fora “fritado”.

? Em auditoria independente interna, feita pelo Pinheiros, ficou comprovado inclusive que meu caso não é isolado. Quem está errado? Não sou eu quem estava arrumando confusão. Enfrentamos tudo sozinhos pelo sonho esportivo. Além disso, crianças que somos, quando começamos neste esporte, não temos estrutura e conhecimento suficientes para combater e nos defender. É muito cruel.

Em 2015, Ângelo já havia sido envolvido em caso de racismo em vídeo que viralizou na internet, com Arthur Nory, Fellipe Arakawa e Henrique Flores, todos da seleção brasileira, fazendo injúrias a ele:

“Seu celular quebrou, a tela quando funciona é branca? Quando ele estraga é de que cor? (risos)?, pergunta Nory. “Preto!?, respondem os outros. “O saquinho do  supermercado é branco. E o do lixo? É preto!?

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Ângelo se sentiu pressionado a processar os amigos, mas ele e sua família decidiram não ir adiante. Ele estava no auge da carreira e lutava por uma vaga para os Jogos do Rio. Ficou fora. Atualmente, em tempos de pandemia, treina em sua casa, na Zona Leste.

? Não adianta usar hashtag na rede social. É preciso ação. Está mais do que na hora das entidades esportivas combaterem os abusos que não são apenas os raciais. Veja os casos de assédios no mundo. As pessoas não têm medo de serem racistas, têm medo de serem pegas.

Aída dos Santos, única mulher na delegação do Brasil em 1964: racismo não era crime. Foto: Arquivo
Aída dos Santos, única mulher na delegação do Brasil em 1964: racismo não era crime. Foto: Arquivo

Estigma para goleiro

Nos tempos de Aída dos Santos, racismo não era crime. Ela chegou a ouvir de um diretor do Botafogo que se dependesse dele, a camisa do clube só seria branca, sem estas listras pretas.

? Eu consegui muita coisa no esporte, mas tenho certeza que seria muito mais reconhecida se não fosse negra ? constata Aída, que durante 32 anos, foi a brasileira com melhor desempenho na história dos Jogos Olímpicos, com o quarto lugar no salto em altura, em Tóquio 1964.

Por décadas, o futebol brasileiro carregou consigo um pensamento racista que só foi desmascarado sob a luz dos novos tempos: a de que goleiros pretos não são confiáveis. Sua origem está no trauma da derrota na final da Copa de 1950 para o Uruguai. O negro Barbosa foi responsabilizado pelo revés.

? A imagem do Barbosa levando o gol ficou registrada e deu brecha para o racista usar isso como pretexto para dizer que goleiro negro não era confiável ? afirma o ex-goleiro Aranha, que se aposentou em 2018. ? Convivi com essa desconfiança a carreira toda. Faz pouco tempo que esse estigma começou a ser abandonado. Mas você ainda vê muito diretor, treinador e torcedor antigos que pensam dessa maneira. E não sabem nem porque e nem de onde surgiu essa ideia.

O goleiro Barbosa pulou atrasado, esperava um cruzamento, não o chute a gol, e a bola de Gighia entrou no canto esquerdo e calou o Maracanã, onde 200 mil pessoas ja festejavam a vitória do Brasil, em 1950 Foto: Arquivo
O goleiro Barbosa pulou atrasado, esperava um cruzamento, não o chute a gol, e a bola de Gighia entrou no canto esquerdo e calou o Maracanã, onde 200 mil pessoas ja festejavam a vitória do Brasil, em 1950 Foto: Arquivo

O racismo não se infiltra apenas em estigmas. Em alguns hábitos do futebol, só quem sofre com a discriminação é que a reconhece:

? Quem tem mais chances de ser vendido para a Europa? Um negro ou um branco com passaporte europeu? Então a base começa a dar preferência para este tipo de jogador. A não ser que apareça um Neymar, um Robinho, um talento fora de série ? observa Aranha.

Quem conhece a história do atacante Felipe Cabeleira também tem dificuldade para rotular o que ocorreu com ele no Santa Cruz, em junho. Recém-promovido ao elenco profissional, o jogador de 18 anos teve seu longo cabelo crespo cortado como forma de batismo pela ascensão de categoria.

O trote é comum no futebol e democrático em relação a cor das vítimas. Mas o corte das madeixas foi uma determinação que partiu do próprio treinador Itamar Schülle. Como mais um ingrediente, o clube passou a chamá-lo pelo sobrenome (Simplício) e não mais pelo apelido.

Aranha sofreu em toda a carreira o estigma de que goleiro negro não dava conta do recado Foto: Cesar Greco / Cesar Greco/Arquivo
Aranha sofreu em toda a carreira o estigma de que goleiro negro não dava conta do recado Foto: Cesar Greco / Cesar Greco/Arquivo

Procurada pelo GLOBO, a assessoria do atleta afirmou que ele não se sentiu alvo de racismo. Mas reconheceu a insatisfação com a perda do cabelo longo, como fica claro nas declarações de Cabeleira à TV oficial do Santa Cruz: “Não vou mentir e falar que não queria de volta, mas vou tentar me adaptar?.

Implícito ou explícito?

 O ex-lutador Diogo Silva, campeão pan-americano em 2007 e mundial universitário em 2009, conta que desde os tempos das categorias de base até o adulto, quando defendeu o Brasil nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, e Londres, em 2012, foi desencorajado a denunciar os casos de racismo.

? Todos, 100% dos treinadores e gestores me falavam: ‘deixa isso para lá’, ‘vamos nos concentrar nos treinos’, ‘isso vai atrapalhar sua carreira’ ou ‘não é hora de falar sobre isso’… Ninguém me disse que eu estava certo e me perguntou se precisava de ajuda ? diz Diogo que, em 2004, mesmo contrariando o que lhe diziam, fez o gesto dos Panteras Negras, no tatame olímpico.

Imitou os emblemáticos Tommie Smith e John Carlos, medalhistas nos Jogos da Cidade do México, em 1968, e heróis da luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos.

O brasileiro foi julgamento internacionamente e absolvido. Isso porque o Comitê Olímpico Internacional (COI) proíbe manifestações políticas, religiosas ou raciais durante a competição.

E mesmo diante da pressão pelas manifestações mundo afora contra o racismo, em junho, o COI confirmou que manteria intacta a regra 50 da Carta Olímpica.

Diogo Silva sempre foi desencorajado a denunciar casos de racismo Foto: Agência O Globo
Diogo Silva sempre foi desencorajado a denunciar casos de racismo Foto: Agência O Globo

Diogo lembra que dos Jogos de Atenas ao do Rio, em 2016, todos os atletas masculinos do taekwondo da seleção brasileira eram negros, ele incluído.

E mesmo com poucas oportunidades ofertadas para esta modalidade, se comparada às mais ricas, ele e os companheiros olímpicos nunca tiveram os melhores salários e as melhores oportunidades.

? Isso é racismo implícito ou explícito? É uma situação esportiva ou racismo? Não é tão fácil ter esta certeza.

Ele, que hoje é integrante da Comissão de Atletas do taekwondo e que pode entrar na mesma comissão no COB, diz que é simplista a forma como o racismo é discutido no esporte. Isso porque o foco é, em sua grande maioria, nos atletas, no que fazem, deixam de fazer, se denunciam ou se posicionam. Lembra que os atletas negros do Brasil, em sua maioria são pobres, bolsistas, e que “Le Bron James e Lewis Hamilton estão em outro patamar”.

?  As instituições precisam combater este crime de fato e isso pode começar com representatividade em seus quadros ? fala Diogo, que sugere ainda um Disque Denúncia específico para dar suporte aos atletas, além de programas educacionais.

O Comitê Olímpico do Brasil (COB) informou que possui um Canal de Ouvidoria e Ética desde 2018 para receber denúncias, por meio de ligações gratuitas, e com “total sigilo?. Também observou que está construindo um curso sobre prevenção e o combate ao racismo, assim como foi feito para o enfrentamento ao assédio e abuso, que contou com mais mil atletas e 6 mil inscritos. A entidade já fez rodas de conversas e ao menos duas lives com atletas debatendo o enfrentamento ao racismo e a igualdade racial alcançaram mais de 2 milhões de pessoas.

A lutadora Aline Silva, prata no Mundial Júnior de 2006 e no Mundial adulto em 2014 e que participou de uma dessas lives, disse que teve de estudar a história negra e buscar referências que não lhe foram proporcionadas nos bancos das escolas. Prega que é preciso conhecimento para as reparações a que o povo preto tem direito. E muitas vezes questiona se isso pode acontecer.

Aline Silva teve de buscar por conta própria referências da hitória negra Foto: Bruna Félix / Bruna Félix/Divulgação
Aline Silva teve de buscar por conta própria referências da hitória negra Foto: Bruna Félix / Bruna Félix/Divulgação

No esporte, ela logo percebeu que a luta iria muito além do tatame, quando começou no judô.

Conta que sofria na modalidade pois não tinha o quimono limpinho, a camisa de baixo branquinha, porque além de ter apenas um quimono, não podia contar com a mãe para as tarefas do dia a dia. Lidia se desdobrava no trabalho fora para colocar dinheiro dentro de casa. E Aline cozinhava e lavava sua roupa.

Ela diz que não se sentia querida no judô e não tinha referências negras a seu lado. Isso sem contar as frases que faziam referência a seu cabelo e que por muito tempo, quando tinha mais dinheiro, a fez gastar com cremes alisantes. Lembra de epiosódio em que treinava com foco para perder peso em um local como convidada e um treinador lhe disse: “Por que você está fazendo isso? Não vai conseguir nada mesmo”.

? Coisas assim, em algumas situações, te fazem acreditar que você não vai conseguir nada mesmo. E como eu posso provar que era racismo? Minha sorte é que meu primeiro sensei acreditava em mim. Ele era negro ? comenta Aline, que aos 16 anos trocou o judô “certinho” pelo desafio do wrestling. ? Não é que eu tenha sentido que deixei de ter oportunidade, promoções ou algo similar. Isso acontece com todos os pretos e pardos do mundo. O racismo nem sempre é explícito. É sorrateiro e por isso é mais difícil de combater

Ela, que já está classificada para os Jogos de Tóquio, afirma que o início de uma transformação começa pela busca por conhecimento e aceitação. Mas que todos precisam fazer auto críticas e não esperar apenas pelas mudanças macros. E pergunta:

? O que você tem feito para mudar esta realidade?