A ideia de que esporte e política não se misturam não existe nos Estados Unidos. Na última quarta-feira, a NBA foi o centro das atenções depois que os jogadores de Milwaukee Bucks e Orlando Magic decidiram não disputar o jogo 5 dos playoffs como forma de protesto pela violência policial contra negros nos Estados Unidos. Antes, atletas de Toronto Raptors e Bopston Celtics já haviam conversado sobre não atuar.
O protesto é pela cena ocorrida na noite de domingo, em Kenosha, no estado americano de Wisconsin: o negro Jacob Blake, de 29 anos, foi baleado com sete tiros à queima-roupa pelas costas por policiais brancos, cena filmada e compartilhada nas redes sociais gerando revoltas. Segundo familiares, Blake está paralisado da cintura para baixo. Wisconsin declarou emergência, depois de prédios e carros serem incendiados.
O fator Bill Russell
Criada em 1946, a Associação da Basquete da América (antigo nome da NBA) sofria diretamente os efeitos do racismo estrutural vigente nos Estados Unidos. Ao todo, 11 equipes disputavam o título, mas nenhum atleta preto estava registrado. Na época, negros não eram liberados a frequentar espaços públicos, o que dificultava o acesso ao esporte.
Apenas em 1950, a NBA adotou um sistema que permitia (ou limitava) a entrada de três atletas negros por equipe. O primeiro a pisar em quadra foi Earl Francis Lloyd, defendendo o Washington Capitols, que sofreu tanta retaliação que encerrou as atividades no ano seguinte.
A primeira grande estrela negra da liga foi Bill Russel, que se notabilizou no Boston Celtics e conquistou 11 títulos em 13 anos ? até hoje é o maior campeão. Ele foi a porta de entrada para a democratização cultural no basquete norte-americano e um dos primeiros a ter voz ativa sobre a causa. Na época, chegou a ser ameaçado de morte.
Nos anos 1960, a NBA sofreu a sua primeira grande crise racial. A final da Conferência Leste de 1968 foi marcada para acontecer um dia após o assassinato do pastor e ativista Martin Luther King Jr, que já liderava movimentos sociais no país. Enquanto um princípio de guerra civil ameçava tomar conta das ruas, a Liga discutia se as finais deveriam acontecer.
Além de Russell, a também estrela Wilt Chamberlain, do Philadelphia 76ers, pediu pelo adiamento da partida, mas não foram ouvidos. A NBA alegou que contratos não poderiam ser rasgados e manteve a realização das finais.
Lakers x Celtics
Nos anos 1980, a rivalidade entre Lakers e Celtics fez a popularidade da NBA explodir ao redor do mundo e, até hoje, é considerada a década de ouro do basquete norte-americana. Duas figuras despontavam como as mais midiáticas da época: Magic Johnson, representando a cidade de Los Angeles, e Larry Bird, defendendo Boston.
As finais se popularizaram também pela rivalidade de classes que existia nos Estados Unidos. Apesar de Bird nunca ter dado declarações racistas, o fato de ser branco o ligou diretamente ao preconceito existente na cidade de Boston, historicamente conhecida por ser uma das mais racistas dos Estados Unidos.
Do outro lado, Magic Johnson era negro e foi abraçado pelo gueto e classes mais pobres que acompanhavam o esporte. Mais do que Lakers contra Celtics, aquelas finais viraram duelos de brancos contra negros e ricos contra pobres. Alheios a isso, Bird e Magic sempre foram amigos.
Nem o maior da história escapou
Michael Jordan é considerado o maior jogador da história do basquete norte-americano, mas não escapou das críticas por não se envolver em questões raciais. Em 1990, o ex-astro do Chicago Bulls foi cobrado por não se manifestar a favor de Harvey Gantt, que tentava ser o primeiro senador negro dos Estados Unidos.
Jordan se manteve isento por questões comerciais e foi bombardeado por torcedores e fãs. Um dos principais motivos foi porque o concorrente de Gantt era Jesse Helms, um político que colecionava declarações preconceituosas, era contra a presença de negros em escolas e ironizava homenagens a Martin Luther King Jr.
Na série “Arremesso Final”, da Netflix, Jordan teve um episódio inteiro para se defender, mas a sua imagem seguiu marcada pela isenção em um momento decisivo da polítiica norte-americana.
? Minha mãe pediu que eu apoiasse Harvey Gantt. E eu disse: ‘Mãe, não vou defender alguém que eu não conheço, mas contribuirei com a campanha dele’. Coisa que eu fiz ? disse Jordan, que hoje é proprietário do Charlotte Hornerts e o único preto dono de fraquia da NBA.
Novos ícones ganham voz
Na era pós-Jordan, vários atletas passaram a ter voz ativa em questões raciais na NBA. Estrelas como Allen Iverson, Stephen Curry e Russell Westbrook viraram pilares e incentivaram debates no esporte. Lebron James é, certamente, a maior força.
O astro dos Lakers sempre usa as suas redes sociais ou entrevistas para se manifestar publicamente. No caso George Floyd, morto em maio, em Minneapolis, LeBron foi um dos primeiros a cobrar por mudanças na categoria policial. Com Jacob Blake, apoiou o boicote dos atletas e escreveu mensagens de protesto.
Lebron já doou mais de US$ 2,5 milhões para o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana dos Estados Unidos para apoiar a memória de Muhammed Ali, outra referência esportiva na luta por igualdade. Em 2018, inaugurou a “I Promisse School”, em Akron (Ohio), uma escola que atende até mil alunos que não tem condições financeiras de pagar pelas aulas.
LeBron também é dono da fundação Children’s Defense Fund, uma ONG que luta pelo direito a voz e igualdade para crianças negras. Nas eleições norte-americanas, Lebron foi contrário ao então presidente Donald Trump, com quem frequentemente troca farpas por questões raciais.
Racismo na liga
Outro motivo para tantos atletas abraçarem as causas raciais é que boa parte deles já foi afetado por algum tipo de violência ou abordagem racista. Sterling Brown, que leo o comunicado do Milwaukee Bucks, nesta quarta-feira, já foi socado e colocado no chão por um policial com o joelho no seu pescoço. No ano passado, Masai Ujiri, um dos sócios do Toronto Raptors, foi empurrado quando tentou entrar em quadra para comemorar o título da franquia. Bradley Beal, astro do Washington Wizards, foi ameaçado verbalmente na frente de toda sua família em batida policial no trânsito e Russell Westbrook foi duas vezes vítima de comentários racistas dentro de uma arena da NBA.
Fonte: O Globo