Messi tem pressa. Não é possível determinar quanto tempo dura a carreira de um atleta em alto nível, muito menos de um gênio. Mas aos 33 anos, Messi sabe que o tempo talvez já não seja seu aliado na tarefa de ampliar seu legado futebolístico. Há duas mensagens no comunicado que enviou ao Barcelona avisando que pretende deixar a Catalunha. Uma, que não está disposto a esperar pela reformulação do projeto esportivo do clube. E a mais importante, que não acredita que a atual direção, nomeadamente o presidente Josep Maria Bartomeu, seja capaz de levar tal reforma a bom termo, criando um time que permita ao argentino ampliar seu cartel, que hoje conta com quatro Ligas dos Campeões com a camisa do Barcelona.
O documento enviado ontem ao clube, caso conduza de fato à ruptura, é um marco na história do jogo. Não só por encerrar uma trajetória de 731 jogos, 634 gols e 34 títulos. Mas por derrubar o último e mais importante pilar que restava de um time que encantou o mundo e revolucionou o futebol, que transformou o Barcelona em referência de jogo bonito, mistura de futebol e poesia, em especial nos quatro anos sob o comando de Pep Guardiola.
André Kfouri:Messi, o guardanapo e o burofax
O “burofax?, que na verdade é um serviço equivalente a uma carta registrada, com reconhecimento de uma terceira parte como forma de lhe conferir veracidade e validade jurídica, encerra um longo desgaste. Desde 2017, em sua última renovação de contrato, Messi fez constar no novo documento uma possibilidade de ruptura unilateral sem pagamento de cláusula rescisória ao fim de cada temporada. Mas por que jamais fez valer tal direito? O que mudou?
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As recentes derrotas em Paris (4 a 0 para o PSG), Turim (3 a 0 para a Juventus), Roma (3 a 0 para a Roma) e Liverpool (4 a 0 para o time de Jürgen Klopp)sinalizavam o envelhecimento de uma espinha dorsal e as deficiências de um projeto esportivo competitivo. Mas a temporada atual, encerrada com o escandaloso 8 a 2 para o Bayern de Munique, fez mais do que escancarar problemas em campo. Foram meses que deterioraram os laços.
Primeiro, a queda do técnico Ernesto Valverde, não tão bem recebida pelo vestiário. Depois, vieram as declarações do ex-jogador e diretor técnico do clube, Eric Abidal, que acusava jogadores de não terem se esforçado o bastante por Valverde. Contrariando um estilo habitualmente low profile, Messi foi a público e cobrou que o dirigente dissesse a quem se referia para que “não sujasse a todos”. Mais tarde, investigações da imprensa espanhola mostraram que o clube – entenda-se Bartomeu – contratara empresas para gerenciar, nas redes sociais, contas dedicadas a difamar jogadores e adversários políticos. “Tudo muito estranho”, disse Messi.
A relação pendia por um fio quando o técnico Quique Setién foi demitido e Messi foi chamado a conversar com o holandês Ronald Koeman, escolhido para o cargo. Sabe-se que Koeman disse ao craque que contava com ele, mas sabe-se pouco além disso. Não é claro se o holandês ofereceu a Messi detalhes da reformulação do elenco. O fato é que, horas depois, o clube comunicava a Luis Suárez, jogador com quem Messi tem a mais estreita das relações, que não contava mais com o uruguaio. Outro laço se rompia.
Qual lado se vê mais frágil no litígio? Lógico que Messi é um ídolo global e o Barcelona sofrerá com sua saída, caso concretizada. No entanto, antes de um divórcio entre Messi e o clube, este é um rompimento entre o craque e Bartomeu. O presidente é, sem dúvida, a parte mais fragilizada. O clube acumula dívidas após gerenciar mal um elenco caro e fazer contratações elevadíssimas e sem resultado. O contexto esportivo e os escândalos fora de campo conduziram a renúncias em massa de vice-presidentes num clube que espera ansioso pelas eleições de março de 2021. Sufocado nas finanças, o Barcelona até poderia enxergar na saída de Messi o único caminho para reconstruir um time. Mas quem gostaria de entrar para a história como o presidente que perdeu Messi? É uma mancha indelével.
A partir daí se constrói a trama dos últimos dias. Assim como os próximos passos. Bartomeu, acredita-se, deixou vazar os comentários de Messi de que se via “mais fora do que dentro do clube”. Deixar claro que a saída é uma decisão do astro seria uma forma de amenizar o impacto. Outro passo foi fazer a imprensa saber que o clube não concorda com os termos do burofax de Messi. Entende que o prazo para o exercício da cláusula de livre saída se esgotou no início de junho, quando terminaria a temporada. Messi, no entanto, poderia argumentar que a pandemia alterou a data de fim do calendário esportivo, algo reconhecido pela Fifa ao remarcar janelas de transferência e permitir extensões de contrato até que as competições terminassem.
A esta altura, parece pouco crível que Messi não tenha ideia de um provável destino. Mas é inverossímil que algum clube no mundo possa pagar os ?700 milhões da multa rescisória, caso o Barcelona insista em não reconhecer o direito de Messi de sair de graça. Restaria o caminho judicial, mas o mais provável seria a mesa de negociações, reunindo o astro, o clube de destino e o Barcelona, em busca de um valor consensual que auxiliasse os catalães em sua ida ao mercado para contrir um novo time. E onde Messi jogaria? PSG, Manchester City, United, Inter de Milão… Especulações não faltam, mas mesmo os mais ricos do mundo teriam alguma ginástica financeira a fazer para arcar com um nome deste porte.
Perder Messi é algo brutal para Barcelona, a cidade e o clube que receberam um menino de 13 anos e viram nascimento e construção daquele que, para muitos, é o maior jogador de todos os tempos. Messi tornou-se símbolo de um novo Barcelona, transformado em modelo, em centro do futebol mundial, cujo jogo tinha estilo próprio, um selo, e que refletia em campo toda a simbologia do “Mais que um clube”. Há quem ainda aposte que tamanha turbulência pode levar a uma reviravolta inesperada: a queda de Bartomeu e a permanência de Messi. Resta esperar os próximos movimentos. Na história do jogo, não se conhece uma trama que tenha concentrado tamanha atenção. Afinal, é Messi.
Fonte: O Globo