Dois conceitos distantes do “tatiquês? devem estar na sua cabeça ao acompanhar Paris Saint-Germain x Bayern de Munique, domingo, às 16h (de Brasília), na final da Liga dos Campeões. Espera-se, é claro, que o título vá para quem apresentar melhor futebol. Mas, caso esse time seja o PSG, será também uma vitória do soft power do Qatar, que usa o clube para fazer sportswashing em meio a denúncias de violações aos direitos humanos.

Essas duas ideias, distantes do debate esportivo, ganharam protagonismo conforme o time de Paris, comprado em 2011 por um fundo de investimentos vinculado ao governo do Qatar, avançava na Champions. Agora que ele está na decisão, tornaram-se aspectos balizadores de torcida. A ideia de soft power, concebida pelo cientista político norte-americano Joseph Nye nos anos 1990, diz respeito à influência de um Estado através de aspectos culturais e ideológicos, em detrimento da dominação econômica e bélica. Já o sportswashing é o uso do esporte para melhorar sua imagem aos olhos do mundo ? tudo a ver com a obsessão do Qatar por uma taça “orelhuda? para chamar de sua.

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A compra do PSG, porém, está longe de ser o único esforço qatari para ser percebido de maneira mais liberal pelo Ocidente. Ainda nos anos 90, o país lançou a TV Al Jazeera, cuja linha editorial refletia uma liberdade de expressão incomum a países da região. Aos poucos, Doha e outras cidades do Golfo Pérsico se tornaram pontos turísticos e parte da rota de negócios do mercado global. Era natural que o esporte também se tornasse um território a desbravar.

? O soft power funciona de maneira diferente para cada país. No caso do Qatar, existe um desejo de se distinguir da Arábia Saudita, onde há muito menos flexibilidade política e ideológica ? explica o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV-EAESP. ? E, como se trata de uma monarquia petroleira, com muito dinheiro acumulado, investir em futebol é um jeito de melhorar a imagem.

REAÇÕES GLOBAIS

De fato, nenhum regime gastou tanta energia ? e, principalmente, dinheiro ? nesse projeto quanto o do Qatar. Além da chegada do PSG à final da Champions, o país sediará a Copa do Mundo de 2022, menos de duas décadas após inaugurar a Academia Aspire, um megacomplexo esportivo para recrutar e moldar talentos.

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Tudo isso só foi possível porque o país de menos de 3 milhões de habitantes abraçou com força a globalização. A China, que até ensaiou uma ofensiva semelhante, não teve a mesma disposição e reforçou práticas mais “fechadas?, como a restrição a estrangeiros nos clubes.

? O futebol é o mais global dos esportes. Um país que é forte no futebol, seja pela seleção ou por seus clubes, ganha influência e pode usar esse prestígio como oportunidade de negócio ? aponta Maurício Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais da Uerj.

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Por isso, o Qatar não é exceção. O Manchester City, outro emergente da era global do jogo, é financiado pelos Emirados Árabes Unidos. E, em meio à pandemia, o fundo soberano da Arábia Saudita tentou comprar o Newcastle, da Inglaterra.

Mas a entrada desses novos atores no mercado da bola tem despertado reações no Ocidente. A Fifa recebe duras críticas por se associar a eles. E entidades como a Premier League se movimentam para que iniciativas semelhantes não prosperem. O fracasso dos sauditas na aquisição do Newcastle se deu, em parte, por pressões de clubes tradicionais e de movimentos pelos direitos humanos.

Há também aspectos econômicos por trás da rejeição a esses “investidores?. Clubes como o PSG inflam ainda mais as cifras do mercado. Não é coincidência que as duas transferências mais caras da história do futebol ? e de longe ? tenham sido feitas pelo time de Paris: a de Neymar, por 222 milhões de euros, e a de Mbappé, por 180 milhões. Em valores de hoje, seria como investir mais de R$ 2,6 bilhões em apenas dois jogadores, uma injeção financeira que desequilibra ainda mais o já desigual tabuleiro do futebol.

 

IMPACTO LIMITADO

Embora o PSG e o City sejam percebidos como “braços? de quem os financia, esses regimes estão presentes de maneira mais sutil em muitos clubes de peso. É o caso do próprio Bayern, que tem entre seus patrocinadores a companhia aérea Qatar Airways. Torcedores do clube alemão chegaram a organizar um evento informal, em janeiro, para questionar a parceria.

? Nós não estamos aqui por nós mesmos. Trata-se de direitos humanos básicos ? justificou um deles ao “New York Times?.

A iniciativa dos alemães reforça que a sociedade civil está atenta. E, embora um título da Champions e a realização da Copa de 2022 possam dar a sensação de dever cumprido aos qataris, a percepção global não deve se alterar muito.

? É uma faca de dois gumes, porque os holofotes se viram para o seu país. Você tem a narrativa do Qatar de ser um país mais aberto que outros da região, mas também a movimentação dos direitos humanos sobre tudo o que ele representa para os direitos das mulheres, de LGBTs… ? analisa Casarões, que lembra ainda as denúncias de mortes de trabalhadores na construção de estádios do Mundial: ? Acho que Qatar teve mais problemas que vantagens.