Este 8 de fevereiro de 2019 será lembrado como a data da maior tragédia da história do futebol do Rio de Janeiro. Seja pelo número de mortes ou pelas circunstâncias de um desastre que vitima crianças, interrompe sonhos e destrói famílias, o incêndio no CT do Flamengo é o acontecimento mais devastador já sofrido por um clube carioca.
Ainda mais doloroso pela idade de vítimas, jovens cheios de esperanças, para quem cada dia era um passo adiante na dificílima caminhada para se tornar jogador profissional. Ainda mais chocante por ser um evento sem precedentes, se não pela quantidade de vítimas, mas pela forma. Afinal, rompe com o enredo mais frequente das grandes tragédias que vitimam atletas em grande escala.
Há tragédias que marcaram a história do futebol e a vida de alguns clubes para sempre. Por exemplo, o desastre aéreo de Munique que, em 1958, matou 23 pessoas, entre elas oito jogadores; o choque de um avião contra a Basílica de Superga, em Turim, que matou 18 jogadores do Torino, em 1949; ou ainda a tragédia que vitimou quase todo o time da Chapecoense, em dezembro de 2016. No Brasil, o ano de 2009 viu um acidente de ônibus vitimar três jogadores do Brasil de Pelotas. Há menos de dois anos, em circunstâncias similares, 22 jogadores do time sub-17 do Vasco ficaram feridos após o ônibus em que se deslocavam tombar.
O ponto em comum entre todas estas histórias é que envolviam delegações em viagens. No Ninho do Urubu, crianças morreram no lugar que sonhavam transformar numa espécie de segunda casa, um símbolo de realização. Cada menino que consegue morar no CT do Flamengo, ou ao menos dormir por algumas noites enquanto passa por avaliação, já ultrapassou um filtro que deixa milhares de outros candidatos pelo caminho. O futebol vive uma nova era desde a construção de centros de treinamento como pólos de desenvolvimento de jogadores. Tais equipamentos tornaram-se um símbolo das fábricas de atletas e, ser parte deles, é como um selo de identidade. Ser um “moleque de Xerém” ou um “Garoto do Ninho” é como um título, uma conquista, um orgulho. Mas a tragédia que marcará para sempre a história do Flamengo e do futebol carioca surpreendeu meninos justamente enquanto dormiam no Ninho do Urubu.
É natural que a primeira reação ao desastre seja identificar vítimas, confortar e respeitar a dor de familiares, amparar sobreviventes, companheiros e ex-companheiros naturalmente traumatizados. Em algum momento, será preciso olhar para a frente. E, por vezes, por mais duro que pareça, é fato que das grandes tragédias parece emergir algo de alentador num futebol e numa sociedade tão marcadas pela intolerância e pelo individualismo. Há uma semana, o Campeonato Mineiro, que realizou um clássico entre Atlético-MG x Cruzeiro menos de 48 horas após a tragédia de Brumadinho, mostrou como o futebol é capaz de ser insensível, imaginar-se numa bolha, transformar em tabu o adiamento de um jogo de futebol. Como se uma partida fosse mais importante do que a vida, como se devêssemos jogar futebol em qualquer circunstância.
Neste contexto, tem enorme peso o luto oficial de três dias decretado pelo Fluminense, a mensagem “Força, Flamengo” publicada pelo Vasco em suas redes sociais, o texto solidário do Botafogo e, principalmente, a forma pronta e descomplicada com que os clubes concordaram em adiar a rodada do fim de semana, que incluía um Fla-Flu com mais de 40 mil ingressos vendidos. Em poucas horas, representantes dos clubes estavam sentados à mesa e, antes de entrarem na reunião, adotavam discursos repletos de bom-senso. Uma necessária demonstração de humanidade, prova de que somos capazes de evoluir.
Também será preciso pensar no futuro. É cruel que a maior tragédia da história do Flamengo ocorra dias antes de os jovens ocuparem instalações das mais modernas do país. Mas se é possível construir algo a partir da catástrofe, talvez seja transformá-la em alerta. Fatalidade ou não, os órgãos responsáveis irão apurar. No entanto, quando um tragédia deste porte acontece no clube de maior receita do país, dos que mais investiu em estrutura nos últimos anos, não é difícil imaginar que tipos de instalações recebem jovens nos mais diversos cantos do país. Transformados em ativos comerciais, fontes de dinheiro para clubes e empresários, convivem ainda com uma antiga cultura de improviso no alojamento de projetos de atletas pelo país. Uma percepção que começava a mudar. Mas talvez seja hora de se lançar um olhar mais rigoroso país afora. Antes que sejamos pegos chorando a perda de outras crianças.
Fonte: O Globo