Os dois erros colocam o zagueiro Varane no centro das discussões. É natural, mas perde-se o fundamental do jogo desta sexta-feira, em Manchester. Por mais que seu projeto financiado por Abu Dhabi tenha gasto muito dinheiro, basta olhar a relação de jogadores em campo e no banco para notar que ainda há uma razoável diferença entre City e Real Madrid, este último uma concentração de qualidade técnica talvez única no mundo. E, ainda assim, o 2 a 1 de ontem ficou até barato, tamanho o domínio tático, coletivo, imposto pelo plano de Guardiola, fechando em inequívocos 4 a 2 o placar acumulado da eliminatória das oitavas da Liga dos Campeões.

O Manchester City viaja a Portugal para as fases decisivas, a partir de agora em jogo único. Nas quartas, terá como adversário o Lyon, batido nesta sexta por 2 a 1 pela Juventus de Cristiano Ronaldo, autor de dois gols. Insuficientes, no entanto, para levar o time adiante após a derrota por 1 a 0 na França. O gol como visitante desempatou a questão.

Cristiano Ronaldo deixa o campo após a eliminação da Juventus Foto: MIGUEL MEDINA / AFP
Cristiano Ronaldo deixa o campo após a eliminação da Juventus Foto: MIGUEL MEDINA / AFP

 

Manchester viu os 90 minutos finais de um mata-mata que ajuda a desmoralizar a tendência a medir treinadores por Liga dos Campeões vencidas, algo ainda habitual, como se o imponderável, o formato do torneio ou seu caráter de um encontro restrito a uma elite, tornassem razoável este tipo de régua. Zidane, tricampeão consecutivamente da Europa, foi eliminado nesta sexta pela primeira vez em quatro participações: à luz das estatísticas, é irretocável. E, de fato, é impossível negar que em cada título sua intervenção foi importante. Mas o duelo tático e estratégico deixou clara a diferença em relação a um dos mais revolucionários treinadores das últimas décadas do futebol. Nada garante que o City passará pelo Lyon, levando Guardiola à oitava semifinal de Champions em 11 temporadas como técnico. Mas é a forma como desenvolve jogadores, influencia o jogo com ideias, estética e resultados, a sua grande marca. E tudo isso por se manter fiel a suas crenças, sem deixar de acrescentar repertório, adquirir novas facetas. Que o diga o jogo de ontem.

Guardiola escalou o jovem Phil Foden pelo centro do ataque e surpreendeu com Gabriel Jesus no lado esquerdo. Pela direita, jogou Sterling. A ideia era que os pontas fechassem a conexão do Real Madrid com os laterais na saída de bola. Quando não apertavam o zagueiro, obstruíam a linha de passe para o lateral. Cabia a Foden, antes de tudo, fechar o passe a Casemiro. Raras vezes se viu o brasileiro tão fora do jogo e esta foi uma das chaves de uma saída de bola tão caótica do Real Madrid.

No início, a partida foi um duelo entre pressões adiantadas e estratégias de saídas de bola, com dificuldades dos dois lados, embora o City causasse ainda mais problemas ao Real Madrid. E via-se Gabriel Jesus trabalhando muito e bem. Ele desarmou Varane e deu o gol a Sterling. Neste confronto, aliás, Guardiola mostrou algumas das armas que acrescentou a seu repertório nos últimos anos, sem renunciar à obsessão pela bola, pelo passe e pelo ataque. Primeiro, ser rápido, vertical rumo ao gol quando o rival pressiona a sua saída de bola, mas o time consegue vencer esta pressão com passes entre o goleiro, zagueiros e volantes. A partir daí, com o campo aberto, o City, que tanto gosta da troca de passses paciente, acelara.

Mas por vezes o Real Madrid encaixava marcadores nos zagueiros, laterais e volantes. E aí o time de Guardiola não hesitava em usar o passe longo de Ederson, a bola pelo alto buscando um homem livre atrás da linha de pressão do Real. Ou mesmo um duelo aéreo que permitisse aos meias, de frente para a área adversária, recuperarem a bola e iniciarem a construção ofensiva. Um ecleticismo sem perder a busca por controlar o jogo.

O City costuma sofrer quando o jogo acontece em seu campo, defende mal perto de sua área. E a qualidade do Real Madrid torna o manejo da bola quase fatal. Em especial quando Benzema se envolve. Por alguns minutos após sofrer o gol, o time espanhol conseguiu sair de trás e se instalar no campo dos ingleses. Viveu seu melhor momento juntando Modrid, Kroos e o próprio Benzema pelo centro, com raras aparições de um Hazard de brilho eventual. Até que Benzema  iniciou o lance que terminou em excelente cruzamento de Rodrygo para o próprio francês cabecear e empatar. Rodrygo e Jesus, diga-se, foram duas ótimas notícias para o futebol brasileiro no jogo. A não utilização de Vinícius Júnior, difícil de entender.

Em tese, o gol poderia causar incerteza no City. Mas Guardiola manteve a aposta, mesmo ainda tendo a vantagem no confronto: seguia pressionando na frente e, pouco a pouco, encontrava mais caminhos para sair jogando desde a defesa. Passou a ter mais posse e mais tempo de jogo no campo adversário, como gosta. Curioso é que, quando se instalava no campo do Real Madrid, nem criava tanto. Mas produzia muitas chances em duas situações: ao roubar a bola no campo ofensivo ou abrindo espaços com boa saída de trás quando os espanhóis adiantavam a marcação. E, nestes dois cenários, chamava atenção Kevin de Bruyne. A forma como gerava opções de passe, conduzia a bola, criava, desarmava. Exibia-se como um dos melhores jogadores do mundo na atualidade.

O Real Madrid já não encontraria mais os caminhos para criar. Apesar da boa partida de Modric, a concentração defensiva do City foi quase inabalável e o segundo tempo teve um domínio bem mais claro do que o primeiro. Mais curioso ainda é que o City poderia ter marcado de várias maneiras. Sterling, em especial, perdeu ótimas chances. Mas foi em outra pressão de Jesus em Varane, esta após uma bola longa de Ederson, que saiu o 2 a 1, obra do brasileiro. O fato de ainda ser um time que desperdiça oportunidades demais pode ser fatal numa Champions decidida em jogos únicos. Ainda assim, é natural que o City cresça em confiança ainda mais após terminar um encontro com um gigante como o Real Madrid com 54% da posse de bola e 20 finalizações contra nove dos espanhóis. Num clube cujo projeto é se inserir entre os grande, eliminar numa noite europeia um Real Madrid 13 vezes campeão é um marco.