A chegada de Domènec Torrent ao Flamengo traz um novo perfil ao futebol brasileiro. Nunca um clube do país contou com alguém que, por quase dez anos, tenha tido papel tão ativo numa comissão técnica da elite dos superclubes europeus nesta era global do jogo. Os dois livros do jornalista Marti Perarnau, que mergulham na intimidade das três temporadas de Pep Guardiola e sua comissão técnica no Bayern de Munique, dão a dimensão do papel do então auxiliar, descrito como “uma opinião que Pep leva muito em conta”. Mas o que fazia o agora técnico do Flamengo?
No Bayern, onde Guardiola trabalhou entre 2013 e 2016, Domènec passa de um dos auxilares a ser o “número 2” na hierarquia, o primeiro assistente, posto que no Barcelona era de Tito Vilanova. Além das discussões diárias sobre a implantação do modelo de jogo, a obra de Perarnau descreve como Torrent, a partir de decisões tomadas por Guardiola em relação aos objetivos de cada treino, era o responsável por elaborar cada sessão de trabalho. O conteúdo, em seguida, era submetido à aprovação de Pep. Antes do treino, a proposta de Torrent era apresentada numa reunião onde eram levados em conta aspectos como estado físico do elenco, temperatura e prevenções de lesões. Dali saía o formato definitivo da atividade.
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Mas Domènec tinha, ainda, papel fundamental em jogadas de estratégia. Junto com o analista Carles Planchart, destrinchava comportamentos dos adversários para preparar os times de Guardiola para as jogadas de bola parada ofensiva e defensiva. Segundo os livros, assistia a pelo menos 50 faltas e escanteios de cada rival antes de cada jogo para avaliar comportamentos. E criava até estratégias para contra-ataques a partir de lances de bola parada contra o Bayern.
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Há um episódio clássico descrito em “Pep Guardiola: A Evolução”, o segundo livro da série. Em novembro de 2015, o Bayern enfrentava o Stuttgart. Torrent, em sua análise prévia, percebera que, ao cobrar escanteios curtos, o adversário buscava dar dois a três passes e procurava os cruzamentos do lateral Insúa, mas deixava apenas um de seus volantes vigiando contragolpes. Torrent orientou os jogadores a pressionarem Insúa quando este recebesse o passe. No jogo, um lance assim originou um contra-ataque fulminante e um gol. Dezessete segundos após a cobrança do escanteio a seu favor, o Stuttgart via a bola em sua própria rede, enquanto Torrent era felicitado na lateral do campo.
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Domenèc também teve papel fundamental na implantação da defesa por zona nas jogadas de bola parada, mas não se limitava a elas. Em dezembro de 2015, um jogo contra o Ingolstadt se apresentava desafiador.
– Estamos encalhados, Dome – disse Guardiola, imaginando que deslocar Lahm para a função de “ponta” poderia ser uma solução.
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Imediatamente, Torrent redesenhou o time mentalmente e alertou Pep de que a mudança imporia alterar a posição de oito dos dez jogadores de linha. Seriam mudanças demais.
– Prepare-as – disse Guardiola.
Torrent e o treinador usaram um papel e desenharam o 4-2-4 em que o Bayern passaria a jogar. O papel foi entregue a Lahm por Guardiola durante um arremesso lateral. O Bayern enfim encontrou a vitória.
Domènec é tido como um temperamento mais “low profile” em relação ao de Guardiola. É um homem mais comedido, mais tranquilo. Mas também tem seus momentos de extrema preocupação, como na prévia do jogo contra a Juventus, pelas oitavas-de-final da Champions em 2016: nas três noites anteriores ao jogo, acordou de madrugada pensando em soluções.
Faria o mesmo antes da semifinal com o Atlético de Madrid. Ali, além das análises habituais do próprio Bayern e do adversário, recebeu de Guardiola a incumbência de montar um “plano de emergência” para os minutos finais caso fosse necessário buscar um gol salvador. O Bayern chegou à fase final do jogo precisando de dois, encontrou apenas um e foi eliminado mesmo após massacrar a área defendida pela equipe de Simeone.
Mas há uma outra passagem clássica que reforça a imagem de Torrent como um conhecedor do jogo capaz de fazer Guardiola lhe dar total atenção. Logo na primeira final que o corpo técnico teve pela frente, Domènec teve uma ideia que influenciaria os três anos de permanência da comissão em Munique. O time enfrentava o Chelsea pela Supercopa da Europa. Kroos deixava espaços às costas que o time inglês explorava, dada a sua dificuldade de ser rápido para girar o corpo e alterar a direção da corrida. Torrent sugeriu a Guardiola usar Lahm como primeiro volante.
– Se ganharmos alguma coisa este ano, será por esta intervenção de Dome – disse Pep após a vitória nos pênaltis.
Desde os tempos de Barcelona, Domènec selecionava, junto à equipe de análise de desempenho, vídeos de análise dos rivais e dos jogos e treinos do time catalão. Em Munique, havia outro hábito: ele e Guardiola observavam imagens de uma mesma atividade, para que depois se encontrassem para contrapor opiniões. O livro “Guardiola Confidencial”, que trata do primeiro ano na Alemanha, retrata a cena, ainda durante a pré-temporada, em que ambos examinavam um trabalho da “pressão de quatro segundos”, ou seja, tempo considerado ideal para retomar a posse após o Bayern perder a bola.
O livro também dá boa pista sobre a velocidade com que Torrent pode imprimir, no Flamengo, conceitos que sejam distintos daqueles usados por Jesus.
– Eles (jogadores do Bayern) estão aprendendo um idioma novo. Digo a Pep para não lhes dar conceitos demais de uma vez, ir mais devagar. É como numa escola: primeiro ensinar os números, depois os dias da semana, os verbos…
Havia na Alemanha, ao menos para jogos em casa, um recurso tecnológico. No banco de reservas, Domènec usava um Ipad conectado às câmeras dos analistas de desempenho, que ficavam nas tribunas. O analista Carles Planchart lhe enviava alguns vídeos de situações que julgava importantes ou de momentos do jogo selecionados pelo próprio Torrent. No intervalo, Guardiola perguntava a Planchart o que ele havia “visto de cima”. Depois, trocava impressões com Torrent, selecionavam vídeos caso desejassem mostrar rapidamente aos jogadores e discutia soluções com o próprio Domènec.
Fonte: O Globo