O tiro esportivo brasileiro celebra, hoje, os 100 anos da conquista das primeiras medalhas olímpicas do país. A prata de Afrânio da Costa, o bronze por equipes na pistola livre 50m (ambos em 2 de agosto de 1920) e o ouro de Guilherme Paraense no tiro rápido 25m (no dia 3) nos Jogos da Antuérpia abriram caminho para o total de 129 vezes em que o Brasil subiu ao pódio até aqui na história das Olimpíadas. O festejado centenário é marcado também pela volta da modalidade aos holofotes, com um interesse crescente da população e o aumento dos adeptos.

Dois fatores explicam este fenômeno. A Rio-2016, que teve no atirador Felipe Wu um dos destaques nacionais, e a eleição de Jair Bolsonaro dois anos depois. Por meio de alterações nas leis, o presidente vem cumprindo sua promessa de ampliar o acesso às armas.

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O número de registros da modalidade CAC (colecionador, atirador e caçador) disparou. Entre 2015 e 2019, o aumento é de quase 959%. Segundo o Exército, responsável pela concessão, foram 6.975 em 2015. No ano seguinte, 20.238. Em 2019, 73.788. Hoje, a instituição contabiliza 238.439 ativos.

? Isso não reflete a situação da confederação. Só se filia a ela quem desejar disputar competições nacionais e ingressar na seleção. O maior efeito está nos clubes.Em alguns, o aumento de inscritos foi de mais de 100% ? esclarece Jodson Edington, vice-presidente da Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE).

A ressalva do dirigente é importante. Os clubes são a base de uma pirâmide na qual a CBTE está no topo. Atualmente, o Exército registra 1.092 entidades de tiro esportivo em seu sistema. Nem todos que as procuram almejam se tornar atleta. A maioria só tem como objetivo aprender a atirar.

Afrânio Costa, Harvey Vellela, Adhaury Rocha e Salvador Trindade formaram a equipe que levou o bronze em 1920 Foto: Arquivo
Afrânio Costa, Harvey Vellela, Adhaury Rocha e Salvador Trindade formaram a equipe que levou o bronze em 1920 Foto: Arquivo

 

“Não saio armada na rua?

Além disso, a responsabilidade pelo tiro no país não é exclusividade da CBTE. Mas ela é a única filiada ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) e quem cuida das categorias contempladas em competições.

Guardadas as proporções, a entidade também viu o número de filiados crescer. Desde 2015, o salto foi de 36% (de 10.844 para 14.749). E vê o atual momento com esperança. Entre as medidas do presidente, uma das mais celebradas é a que desburocratiza a prática para adolescentes. Antes permitida com autorização judicial, hoje só precisa do consentimento dos pais por escrito.

? Para a gente tudo era mais difícil. Até a renovação no esporte. A legislação anterior praticamente impedia a participação de jovens. Enquanto outros países já tiveram medalhista olímpico com 16 anos, no Brasil isso não era possível ? complementa Jodson.

O otimismo entre os atletas é mais contido. Para eles, o aumento do interesse no esporte veio acompanhado de maior exposição negativa na mídia. A modalidade passou a ser associada a quem busca nas armas defesa pessoal.

? Já fui questionada por jornalista se já atirei em alguém. Eu sou medalhista pan-americana e atleta olímpica. Você tem noção do que é perguntarem isso para mim? ? desabafa Janice Teixeira, que preside a comissão nacional de atletas do tiro. ? Precisamos separar quem busca defesa pessoal dos atletas. Não saio na rua armada. Não vou ser abordada por bandido e matá-lo. O esporte não me permite isso.

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Na avaliação da atiradora de fossa olímpica, os efeitos desta comparação são uma rejeição maior de potenciais investidores. E os custos do esporte são altos. Ainda que alguns contem com patrocínio, bolsa-atleta e ajudas de Exército, CBTE e COB, não é suficiente para cobrir a totalidade dos gastos com importação de armas, aquisição de munições, viagens, hospedagens e inscrições em torneios.

A história de Felipe Wu, prata na Rio-16, serve de exemplo. Mesmo com os apoios, precisou improvisar treinos no quintal e economizar munição. Dificuldades que explicam porque, depois de 1920, o esporte levou 96 anos para voltar a conquistar uma medalha olímpica.

? O Leo (Lustosa, campeão mundial júnior na fossa olímpica em 2019) chegou onde chegou pela mão e bolso do pai. Não é um atleta feito por entidade ? conta Janice. ? O esporte do tiro poderia tentar apoio de empresas privadas ou de estatais. Mas como tu vais ser recebido por alguém para conversar depois que te colocam no patamar de grupo fora da lei?