Após reforma que durou três anos e teve assinatura do renomado arquiteto Kengo Kuma, o Estádio Nacional de Tóquio estaria apinhado de gente nesta sexta-feira, de todos os cantos do mundo, celebrando lado a lado e com a perfeição japonesa o início dos Jogos Olímpicos de 2020. Mas, por causa da Covid-19, as estrelas desta festa, que estariam no auge da forma física, brigando por recordes e medalhas de ouro, estão lutando para voltar à boa forma, aos treinos duros e sonhando com a retomada das competições de alto nível. Alguns lutam até contra o desânimo.
? Nas redes sociais, todos falam que estão treinando em casa, motivados, mas a realidade é que a maioria ficou ou está desmotivada. Alguns atletas ficaram entediados, engordaram, perderam a vontade… Porque, para muitos, ainda não tem uma data para o retorno dos treinos, não tem calendário de competições, não há algo próximo de acontecer. E eles gostam de rotina, de planejamento e, além disso, ficaram impossibilitados de fazer o que mais gostam e precisam, que é treinar. Perderam a gratificação do treino e da competição ? avalia Carla Di Pierro, psicóloga do Time Brasil, do Comitê Olímpico do Brasil (COB) ? Temos a imagem de que atleta é um pouco super herói, mas eles sentem as consequências deste isolamento social como nós.
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Carla, que trabalha desde 2012 no esporte olímpico, ajudou os atletas a entenderem e aceitarem o que sentiam e a criarem rotinas com cuidados com o sono, alimentação, treinos possíveis e alguma atividade prazerosa.
Ela explica que a pandemia gerou muita ansiedade e que ela ainda paira no ar, mesmo com o inicio da retomada dos treinos.
É que os atletas ainda iniciam esta nova fase de preparação e estão sujeitos a mudanças repentinas. A retomada do novo normal se dá em diferentes etapas por diferentes estados brasileiros e países. Há disparidade entre os continentes, com as Américas, por exemplo, ainda com alto índice de mortes e casos positivos de Covid-19. E a grande maioria dos atletas do Brasil ainda não conseguiu usar as instalações e materiais de costume ou retomar rotina esportiva.
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Nos próximos cinco meses, um grupo com cerca de 200 atletas de elite, de 15 modalidades, treinará em Portugal, em ação bancada pelo Comitê Olímpico do Brasil ? cerca de 80 embarcaram nas duas últimas semanas. Também nesta segunda-feira, o CT do Time Brasil, na Barra da Tijuca, reabriu para poucos atletas e com protocolos rígidos de segurança.
? Tem atleta que se abalou mais do que outros, o que é perfeitamente compreensível. E tem atleta que conseguiu correr atrás. Além disso, alguns tem mais condições de manter treinos fortes do que outros. Hoje, os atletas, de uma uma forma geral, vivem um dos seus piores momentos esportivos da vida. E voltar efetivamente vai ser um desafio, incluindo para as comissões técnicas que terão de se preocupar com os riscos de contusões ? analisou Renan Dal Zotto, técnico da seleção brasileira de vôlei, atual campeã olímpica, que perdeu a temporada de 2020. ? Estamos todos, do mundo, no mesmo mar. Não no mesmo barco. Porque tem gente de veleiro, bote salva vidas, colete ou se afogando. Mas, como vamos ter um ano pela frente até os Jogos em 2021, dá para trazer todos os atletas da nossa seleção para a mesma página.
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A oposta Sheilla, também do vôlei, contou que ainda tem dificuldade para manter os treinos mesmo com uma condição privilegiada. No inicio da pandemia, ficou isolada com a família em um sitio no interior de Minas Gerais e alugou pesos para poder treinar. Hoje, está no litoral norte de São Paulo, onde mantém uma casa, mas não tem equipamentos. Usa elásticos para exercícios de força e corre na areia. Diz que seria impossível manter alguma rotina se não tivesse a ajuda de uma babá nos cuidados com as duas filhas pequenas, com menos de dois anos.
? Nunca tive equipamento para treinar e por isso, muitas dificuldades. Meu objetivo é não perder tanto a forma física ? contou a atacante, que no início da pandemia ficou mais “deprê”, principalmente por causa “do mundo que as filhas estão herdando”. ? Tem dias que dá mais preguiça, minhas filhas exigem mais, fico mais cansada. Tem dias que tenho coisas pessoais para fazer e complica também. Mas me sinto motivada porque quero continuar a jogar vôlei. Torço e rezo para os Jogos acontecerem em 2021. Ainda há dúvidas.
Saúde mental
Assim como a questão física, o psicológico, agora abalado com regras de distanciamento social e mortes aos milhares, é apontado como um dos grandes desafios para os Jogos de Tóquio, daqui a um ano.
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Uma pesquisa do Comitê Olímpico Internacional (COI), divulgada em junho, revelou que se manter psicologicamente saudável, assim como esportivamente, são os maiores desafios desta fase atual da pandemia (ambos com 32%).
Ainda segundo os resultados, 56% dos atletas disseram que era difícil treinar efetivamente e de forma adequada e 50% lutava para se manter motivados. Entre os atletas da elite, esses números são ligeiramente diferentes: 30% se preocupava com a saúde mental e 33% com o gerenciamento da carreira esportiva. Além disso, 57% achava difícil treinar de forma efetiva e 49%, de se manter motivado.
A pesquisa foi realizada com 4.089 atletas e membros das comitivas olímpicas de 135 países. Deste total, 3.289 eram atletas, sendo 61% da elite. O Brasil foi um dos destaques, com o maior número de participações: 12%, seguido da Itália (11%) e Alemanha (9%).
? Eu duvido de qualquer pessoa que disser que tem passado por tudo isso com 100% de otimismo ? diz o nadador Bruno Fratus, que mora em Coral Springs, na Flórida (EUA), onde a pandemia não dá sinais de recuo. ? Lidar com a incerteza tem sido o maior desafio. Onde eu moro há uma discussão imensa se deveríamos reabrir ou não. Vivo a ameaça de lookdown diariamente. Ou seja, momentos de ceticismo e até pessimismo são naturais.
Segundo Jorge Bichara, diretor de esportes do COB, Fratus vive em clima de ioiô permanente. Após duas semanas de treinos duros na piscina, teve de voltar ao isolamento porque um guarda vidas testou positivo para o novo coronavírus e a piscina pública onde ele treina fechou. Ele retornaria aos treinos na água ainda esta semana.
Contou também que entre os atletas da elite, a equipe da canoagem do Brasil foi a que menos sentiu, em termos esportivos, as restrições da pandemia. Como moram isolados em uma casa em Lagoa Santa (MG) e não costumam viajar com frequência para competições internacionais, por opção da comissão técnica, Isaquias Queiroz e Cia treinaram normalmente e com segurança, já que o local, ao ar livre, é quase exclusivo.
? Adaptaram a rotina de alimentação, que faziam em restaurante, para a casa da seleção. Eles se mantiveram isolados e não pararam de treinar. Agora entram em férias. Mas são exceção ? lembrou Bichara, para quem cerca de 60% dos atletas do Brasil estão retomando os treinos.
O diretor acresenta que os atletas de alto rendimento do país nunca passaram por períodos tão longos de inatividade ou redução de treinos. E o fato de a Europa estar à frente do Brasil na volta à vida normal é motivo de inquietação. Inclusive para treinadores que se sentem ansiosos tanto quanto os atletas. Mas, segundo ele, essa retomada precisa ser planejada, mesmo que a curto prazo.
? Planejamento é uma necessidade da população geral, mas o atleta organiza sua vida com base no calendário esportivo, com ênfase nos momentos em que ele vai ser avaliado, testado. Se os Jogos Olímpicos irão acontecer ou não, saberemos de forma definitiva em março ou abril. Trabalhamos com a realização dos Jogos em julho de 2021. Não há outra alternativa.
Em Portugal
No Brasil, o COB reabriu seu CT, nesta semana, na Barra da Tijuca, onde treina Ana Marcela Cunha. Ela disse que teve de se reinventar e que aprendeu a fazer “do limão uma limonada”. Havia transformado a varanda da sua casa no seu CT e usava um simulador de braçadas emprestado pelo COB para compensar a falta da água. Segundo ela, manteve cerca de 80% dos treinos graças também a ajuda psicológica.
Mas, nem todos os esportistas estão podendo usar instalaçoes esportivas em suas cidades. Assim, para driblar as restrições que ainda vigoram no Brasil, o COB criou a Missão Europa e enviou na semana passada o primeiro grupo, com 72 atletas (boxe, judô, nado artístico, natação, ginástica artística e rítmica) para treinamento em Portugal ? a vela viajou para Cascais, no litoral de Lisboa.
A base principal do Brasil é Centro de Treinamento de Rio Maior, um equipamento público-privado a 75km de Lisboa, alugado por R$ 4,7 milhões. Todos são submetidos a teste para Covid-19 antes do embarque e depois, já na Europa.
? Parar quase 90% do que eu estava acostumado a fazer é muito complicado. Eu quase enlouqueci ? admite o judoca Eric Takabatake, da categoria ligeiro (-60kg), que está em Portugal treinando. ? Se fosse esperar a abertura das instalações no Brasil, estaria mais prejudicado ainda.
Rafael Silva, o Baby, da categoria pesado (acima de 100kg), conta que nesse reinício dos treinos de luta, tem sentido dificuldade por causa da inatividade. E olha que ele alugou uma academia para poder treinar sozinho, sem risco de contaminação pelo novo coronavírus.
? Mesmo cuidando da parte física, não se trata de uma competição de peso e sim de judô. Senti muita falta dos treinos específicos, do tempo de luta, dos golpes. Agora que voltei, parecia que não treinava há anos. A sensação de desespero passou um pouco e conseguirei retomar logo o que perdi ? declarou o judoca, que acompanhava o retorno aos treinos dos rivais na Europa e na Ásia. ? Imagina isso! E eu estava a três competições da classificação olímpica. O desafio é mater a motivação porque essa linha de chegada está lá na frente.
Fonte: O Globo