Um dos dias mais tristes da história do futebol brasileiro, a final da Copa do Mundo de 1950 completa 70 anos nesta quinta-feira. O aniversário do “Maracanazo? traz à tona os mesmos personagens de sempre da derrota da seleção por 2 a 1 no confronto contra o Uruguai. O principal deles é Moacir Barbosa Nascimento, que faleceu em 2000, e mesmo após a morte ainda carrega o fardo da decepção de uma nação inteira. Não só ele, como a cor de sua pele. Motivado por um racismo estrutural que teve no gol de Gigghia a oportunidade perfeita para culpar um homem negro, o lance reverbera por sete décadas e dificulta a vida dos goleiros com o tom de pele parecido com o de Barbosa.

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Levantamento feito pelo GLOBO mostra que 75 goleiros estão registrados nos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro, dos quais 30 são não-brancos. Apenas 12 deles são negros retintos, um total de 16% dos vinculados, que ainda seguem longe da base majoritariamente branca que lidera a lista.

Curiosamente, o Vasco da Gama, ex-clube de Barbosa, é quem abre mais espaço na posição. Três dos quatro goleiros do seu elenco profissional são negros. São eles Jordi, Lucão e Alexander.

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Até mesmo quem é notoriamente conhecido pela sua qualidade já foi vítima. Aos 19 anos, Jefferson, ídolo do Botafogo hoje, se destacava no Cruzeiro, mas ouviu de um dirigente da CBF que não poderia disputar o Mundial Sub-20 com a seleção brasileira por ter a pele negra, em 2003. O torneio foi transferido para o final do ano e, após a queda do censor, conseguiu ser convocado.

? Eu nem estava esperando [ser convocado]. Foi quando me ligaram: “E aí, está preparado para voltar à seleção? A gente ia te convocar, mas fomos barrados, porque não poderia convocar goleiro negro”. Uma pessoa (dentro da CBF) falou que não poderia convocar. Como a pessoa saiu, agora eles poderiam ? revelou o goleiro.

Botafogo x Parana pelo Campeonato Brasileiro no Estadio Nilton Santos Foto: Vitor Silva / Vitor Silva/SSPress/Botafogo.
Botafogo x Parana pelo Campeonato Brasileiro no Estadio Nilton Santos Foto: Vitor Silva / Vitor Silva/SSPress/Botafogo.

Outro caso icônico foi o do goleiro Aranha, ex-Santos, que em 2014 foi chamado de “macaco” por vários torcedores do Grêmio. O clube gaúcho foi excluído da Copa do Brasil daquele ano como punição, mas a carreira do goleiro ficou estigmatizada pelo episódio. Aranha se aposentou quatro anos depois do episódio, aos 36 anos.

No final dos anos 1970, Jairo, que foi bicampeão paulista pelo Corinthians, ouviu que “goleiro tinha que ser loiro de olho azul” e que revelou que “quando sofria um gol, a primeira coisa que falavam era de sua cor”.

Reparação histórica

Apesar dos pesares, Jefferson, Aranha e Jairo venceram as dificuldades impostas. Barbosa, nem tanto. Mas se o ex-goleiro não teve o reconhecimento merecido em vida, existe uma mobilização a seu favor após a morte. Um grupo de cruz-maltinos criou uma campanha para que o CT do Vasco, que deve ser inaugurado este ano, se chame Moacyr Barbosa em sua homenagem.

Barbosa defendeu o Vasco por quase 14 anos, em duas passagens (de 1945 a 55 e de 1958 e 62). E foi o goleiro titular em uma das conquistas mais importantes do clube carioca: o título sul-americano em 1948, no Chile. Além de ter ganho seis vezes o Campeonato Carioca (1945, 47, 49, 50, 52 e 58). Ele foi eleito um dos cinco maiores ídolos da história do Vasco em votação do Jornal O Globo.

Um grupo de amantes do futebol encontrou uma outra forma de homenagear a história do goleiro da Copa de 1950. Um torneio de várzea criado no Rio de Janeiro em 2015 como uma forma de incentivar a prática amadora do futebol de 11 leva o seu nome. Com dez equipes nesta temporada, o “Barbosão? acontece entre março e dezembro, e propõe discussões sociais para acompanhar a cervejinha após o apito final.

? Essa homenagem do campeonato ao Barbosa é uma tentativa de justiça por um homem que foi injustiçado a vida toda ? disse Guilherme Sabino, goleiro de 35 anos que joga pelo Luckaks. ? No Barbosão, o futebol dentro de campo é a mesma coisa, todo mundo quer ganhar. Mas o pós-jogo é muito bom, aprendo muito com os meus colegas ? conta ele, que já sofreu racismo de um policial no Maracanã.

Ghiggia marca o Uruguai na vitória sobre o Brasil na final da Copa de 1950 Foto: Anonymous / Agência O Globo
Ghiggia marca o Uruguai na vitória sobre o Brasil na final da Copa de 1950 Foto: Anonymous / Agência O Globo

 

A partir do ano que vem, o campeonato contará com o Sankofa, equipe de futebol composta apenas por jogadores negros. O funcionário público Jonas Magalhães, fundador do Barbosão, explica que a escolha do nome do torneio foi uma forma de incentivar o debate sobre o racismo.

? Percebemos que um dos casos mais emblemáticos de racismo no futebol foi o Barbosa na copa de 1950. A gente divulga sempre reportagens e dados que contam a história dele. Entramos em contato com a família e queremos trazer a eles para uma final ? conta Jonas.

Em Copas, 56 anos sem negros

Silvio Almeida é filho do ex-goleiro Barbosinha, que defendeu o Corinthians na década de 1960. Após entrevista ao programa ‘Roda Viva’, viu uma de suas argumentações reverberar no cenário esportivo: o preconceito que o pai sofreu pela cor de sua pele

? Eu já ouvi de muita gente que negros não serviam para ser goleir.o. Eu fiquei pensando no porquê falam disso e sabe a que conclusão cheguei? Que falta aos goleiros negros aquilo que é quase natural nos brancos: a confiança. Como posso confiar em um negro? Eu tenho que confiar no goleiro ? declarou Silvio, é que é professor, jurista e autor do livro “Racismo Estrutural”.

A história da seleção brasileira em Copas pós Barbosa corrobora com a opinião de Silvio. A camisa 1 no momento mais importante do futebol brasileiro só voltou a ser usada por um negro em 2006, com Dida, o primeiro goleiro negro a se firmar na posição após a final de 1950.

Jogo entre Brasil x Alemanha no estádio do Mineirão Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano / Agência O Globo.
Jogo entre Brasil x Alemanha no estádio do Mineirão Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano / Agência O Globo.

Na Copa seguinte, em 2010, Júlio César cometeu falha que eliminou o Brasil no Mundial de África do Sul, contra a Holanda. Em 2014, sofreu sete gols da Alemanha. Seu status de ídolo, porém, não se alterou: mesmo criticado, seguiu ? merecidamente ? entre os maiores ídolos da Inter de Milão e teve uma despedida de gala no Flamengo. Júlio não tem culpa, mas mostra como o racismo define os vilões pela cor da pele.

? O goleiro ocupa uma posição de confiança no imaginário das pessoas. É possível que tenham criado um estigma de que negros não devem ocupar esses espaços, principalmente pelo fato de que tivemos pouquíssimos goleiros negros na seleção brasileira que jogaram uma Copa do Mundo ? disse a professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Leda Costa.

Pesquisadora em narrativas do jornalismo esportivo, ela explica que o caso do Barbosa é único. Ele se passa numa época em que o acesso aos veículos de comunicação era limitado, e a seleção era vista como um símbolo nacional, sentimento que foi diminuindo com o tempo.