A cena final do Estadual de 2020, o Flamengo com a taça de bicampeão, não era nada além do que se dava por certo desde janeiro, tamanha a diferença técnica, financeira e estrutural que o separa dos rivais locais. Mas é impossível olhar este desfecho tão previsível, o título tratado como inevitabilidade e confirmado mesmo sem que o time chegasse perto de sua melhor versão, e não enxergar um motivo de reflexão.
O gol de Vitinho, aos 49 do segundo tempo, apenas encerrou qualquer chance de surpresa, ainda que o Fluminense tenha resistido muito, e com virtudes enormes. Mas até esta resistência, como se não restasse alternativa a não ser resistir, é sintomática. E não indica que o Rio vá por bom caminho.
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Antes de voltar ao jogo, é importante não permitir que esqueçamos que tipo de Estadual termina. Esta foi a competição em que o futebol, tanto na escolha do momento de sua volta quanto na forma, foi insensível à maior tragédia do país em muitas décadas. A pandemia recebeu tratamento frio, lateral. O que importava ? salvo manifestações de Fluminense e Botafogo ?, era voltar a jogar a todo custo. Foi o Estadual do futebol ao lado do hospital de campanha. Foi o campeonato que reforçou o quanto o modelo em que federações sequestram três meses da vida dos clubes grandes se esgotou. Em nome de alianças de ocasião, a entidade chega a processar filiados, se posiciona de acordo com suas conveniências, enquanto clubes pensam de forma individualista, num duelo de bastidores que sabota o produto. Talvez tenha sido apropriado não haver uma final apoteótica.
Durante os três Fla-Flus disputados, as dúvidas eram por quanto tempo o Fluminense iria resistir e como faria para achar uma bola que lhe desse o título. Não são bons sinais. Porque enquanto o Flamengo cresce em receitas, em elenco, em ideias de jogo, os rivais locais quase não dão sinais de evolução estrutural. Nos 270 minutos de Fla-Flu, talvez em 45 o Fluminense tenha tido protagonismo. No mais, parecia executar o papel reservado a qualquer rival do Rio diante do Flamengo. E estamos naturalizando isso. O Fluminense, pela forma como conseguiu resistir e, em passagens do segundo jogo, incomodar o Flamengo e deixá-lo desconfortável, é um destes sinais positivos. Embora ainda tímidos, embrionários. Odair Hellmann faz bom trabalho: tem muito menos tempo no cargo do que Jesus e, após a parada pela pandemia, teve muito menos tempo para treinar, diga-se.
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Por outro lado, a comemoração um tanto contida ao apito final, sem a explosão de outros títulos, transformava em imagens o significado atual do Estadual para o Flamengo. Lógico que ganhar é saudável, um clube se alimenta de troféus e o rubro-negro teve que suar contra um Fluminense bravo. Mas por vezes é como se o rubro-negro jogasse o torneio local mais para evitar as consequências desagradáveis da derrota do que pela glória da conquista.
TORCIDA VIRTUAL
O Flamengo construiu sua hegemonia com algo além de dinheiro: com boas ideias de futebol de Jorge Jesus. E como hoje o Campeonato Carioca não é um fim, é uma passagem na temporada, perdê-lo seria terrível. A definição de seu futuro é um ponto de inflexão na temporada do clube. Ontem, foi curioso ? e sinal dos tempos ? como, mesmo tendo o empate a favor, o Flamengo jogou quase todo o jogo no campo rival, como se espera que faça nos clássicos cariocas.
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Tempos estranhos de Maracanã sem público e alto falante estreando torcida virtual. Teve até vaia para a entrada em campo tricolor.
Quando torneios fazem times se enfrentarem seguidamente, por vezes é como se um jogo fosse a continuação do anterior. Técnicos levam para casa questões e se debruçam sobre elas. Ontem, o domínio do Flamengo, seu volume, tinha como base a recuperação de sua identidade: voltara a ser intenso, a retomar a bola no ataque. Mas tecnicamente não era brilhante. Jorge Jesus devolveu ao time Éverton Ribeiro e Gérson, queria que Éverton e Arrascaeta buscassem os espaços entre zagueiros e voltantes do Fluminense, o que não vinha acontecendo. E foi a partida em que o rubro-negro mais achou espaços na ótima marcação tricolor. Pedro teve duas ótimas chances antes do intervalo.
Mas foi também no primeiro tempo o período em que o Fluminense mais achou contragolpes. Após refletir sobre os 180 minutos anteriores, o técnico Odair Hellmann redobrou a aposta na explosão de Evanilson contra Léo Pereira, e também nas bolas em diagonal às costas dos laterais. O centroavante teve a primeira chance do jogo e criou a jogada para Marcos Paulo quase marcar.
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Vieram as substituições e, nesta hora, fica ainda mais clara a diferença entre um elenco e outro. Jorge Jesus foi colocando Michael e Renê, depois Vitinho, Diego… Odair até tinha Ganso como cartada, mas também Araujo, Caio Paulista, Pacheco.
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O fato é que o Flu sequer o contragolpe achou na etapa final. O Fla, mesmo com atuação pálida, foi dono de todo o volume, jogou no campo rival, mas quase não criava. Foram 45 minutos mal jogados dos dois lados. Só que o regulamento impunha ao tricolor sair de seu conforto e, aos poucos, se abrir. Foi fatal. Numa das tantas bolas que o Fla achou no espaço deixado, Vitinho contou com desvio da zaga para vencer Muriel. Flamengo bicampeão, como se previa desde janeiro.
FLAMENGO 1 X 0 FLUMINENSE
Flamengo: Diego Alves, Rafinha (Gustavo Henrique), Rodrigo Caio, Léo Pereira e Filipe Luís (Renê); Arão, Gerson (Diego) e Arrascaeta (Michael); Everton Ribeiro, Pedro (Vitinho) e Bruno Henrique.
Fluminense: Muriel, Gilberto (Michel Araújo), Nino, Matheus Ferraz e Egídio; Hudson, Dodi (Felippe Cardoso) e Yago Felipe (Caio Paulista); Nenê, Marcos Paulo (Fernando Pacheco) e Evanilson (Ganso).
Gol: 2T: Vitinho, aos 49 minutos.
Árbitro: Grazianni Maciel Rocha.
Cartões amarelos: Evanilson, Michael, Rafinha.
Público e renda: Portões fechados.
Local: Maracanã.
Fonte: O Globo