Se na reunião de 16 de março a Ferj – contrariando o desejo de outros 14 clubes – considerou os votos de Botafogo e Fluminense para suspender o Carioca diante da chegada da pandemia do coronavírus, a reta final do estadual tem os dois clubes em lados opostos à Federação. A escalada da tensão reserva capítulo diferenciado para o Botafogo, já que o clube foi alvo de punição concedida pela Federação diante de uma dívida referente a custos de operação de partida. O alvinegro questiona o valor. O Flu recebeu conta similar, fez pagamento antecipado, mas também coloca a despesa em xeque.

A suspensão do Carioca, em março, só não aconteceria se houvesse unanimidade pela continuidade do torneio. Mas a retomada do estadual se deu por critérios diferentes. Botafogo e Fluminense ainda remam contra a maré, e a queda de braço política parece não estar no fim.

Nos últimos meses, alvinegros e tricolores se alternaram no topo do nível de tensão em relação à Ferj e aos outros clubes. Um exemplo é que, no começo de junho, o Flu saiu do grupo de Whatsapp dos dirigentes, alegando ter sido desrespeitado. O Botafogo, por outro lado, seguiu no debate. Antes desse episódio, os médicos de todos os clubes se debruçaram no desenvolvimento do protocolo Jogo Seguro, o que deu a impressão aos demais dirigentes de que Flu e Bota estariam no caminho de uma mudança de comportamento.

Personificar os protagonistas episódios ajuda a compreender o cenário. No lado do Fluminense, o presidente Mário Bittencourt, com sua eloquência de quem milita nos tribunais há anos, usou o foro de discussão para escrever mensagens robustas no grupo e discursar com veemência nas reuniões virtuais contra a volta do futebol no Rio. Ao defender seu direito com de forma insistente, Mário também gerou doses de antipatia entre os pares.

Nelson Mufarrej, embora um pouco mais contido nos discursos, repassava o mesmo conteúdo: não queria jogar, caso não houvesse aval das autoridades. As vozes mais duras do Botafogo estavam fora das reuniões na Federação. Carlos Augusto Montenegro, membro do comitê gestor do futebol, não se furtou de usar sua metralhadora giratória contra os movimentos pela volta do futebol. O Flamengo foi o alvo predileto, mas a Ferj também entrou na mira.

Por outro lado, o presidente da Ferj, Rubens Lopes, também não fica atrás na força com as palavras. A Federação, não é de hoje, tem em seu arquivo notas oficiais que demandam busca ao dicionário por causa do vocabulário rebuscado. Nas reuniões, Rubinho se mostra fã de analogias. Em arbitral recente, já com objetivo de marcar datas dos jogos da Taça Rio, chegou a dizer que Flu e Bota eram como alunos que não estudaram para a prova e, na véspera, queriam adiamento dela.

Se o aval das autoridades era o requisito, a Ferj e os demais clubes trataram de ir em busca dele. Foi um movimento explícito. Mas Botafogo e Fluminense não mandaram representantes à reunião com o prefeito Marcelo Crivella, no Riocentro, em 24 de maio, que pavimentou a liberação para volta aos treinos com bola em junho. Àquela altura, o Flamengo já tinha levado seus jogadores ao Ninho do Urubu para reiniciar os trabalhos de recondicionamento. Na semana anterior, o presidente Rodolfo Landim foi a Brasília para atestar de Jair Bolsonaro o apoio à volta do futebol.

Os pequenos voltaram a treinar, enquanto Fluminense e Botafogo mantiveram trabalhos virtuais com os jogadores. Quando a Ferj marcou o arbitral para debater as datas do reinício da Taça Rio, foi a gota d’água para acirrar ainda mais os ânimos. A reunião varou a madrugada diante da falta de consenso. Foi necessário continuar no dia seguinte e o entendimento não veio de novo. Flu e Bota queriam jogar só em julho, clamando por tempo de treinamento de 10 dias, no mínimo.

Pela Ferj, prevaleceria a vontade da maioria de reiniciar a competição quase de imediato. Tanto que Flamengo e Bangu se enfrentaram no dia 18 de junho, no Maracanã, ao lado do hospital de campanha. No Tribunal de Justiça Desportiva do Rio (TJD-RJ), o pedido de adiamento dos jogos de Fluminense e Botafogo não foi atendido. O recurso foi levado ao STJD. Antes da liminar, uma reunião de mediação que também teve primeiro e segundo tempo. Dois dias. Mais horas e horas de verborragia sem acordo.

Era sexta-feira, e os dois teriam que jogar na segunda-feira seguinte. Mas, no sábado, surgiu outro elemento: um decreto do prefeito Marcelo Crivella, que suspendeu os jogos do Carioca até o dia 25 de junho, a quinta-feira daquela semana que estava prestes a começar. O STJD foi a reboque e determinou a marcação da quarta rodada a partir do dia 28 de junho.

Ah, de novo, é possível personificar a confusão. O técnico Paulo Autuori entrou firme no debate e nas críticas à Ferj. Depois de entrevista ao GLOBO, na qual classificou a entidade como Federação dos Espertos do Rio de Janeiro e como o um feudo, o TJD aplicou suspensão preventiva de 15 dias. A decisão caiu no STJD.

Quando as partidas finalmente aconteceram, tanto Flu quanto Bota criticaram, com faixas, a volta dos jogos. Autuori nem sequer ficou no banco de reservas, em protesto. O técnico ainda viria a criticar clubes pequenos, resultando em notas oficiais pesadas de Portuguesa e Bangu (clube de origem de Rubens Lopes, presidente da Ferj).

Mas, ao fim dos confrontos, o caos mais recente: a Federação cobrou R$ 25 mil em despesas operacionais dos jogos de Botafogo e Fluminense, ambos realizados no Nilton Santos. No Bangu x Flamengo, o mesmo item custou dez vezes menos. O tricolor pagou por antecipação, mas contesta o valor. O Botafogo não pagou. Foi o gancho para a Ferj se valer de dívidas anteriores e decretar a perda de mando de campo ao clube. O presidente alvinegro, Nelson Mufarrej, disparou:

– Não nos surpreende essa postura lamentável da Ferj. O Botafogo vai sempre trazer à baila assuntos que entende ser dos seus interesses, sem medo de represálias ou retaliações. O clube não vai deixar de se posicionar para apoiar o melhor protocolo, que é aquele que preserva as vidas. Nessa pandemia, a Ferj deu aula de como desrespeitar filiados que pensam de forma diferente. Queremos justificativas das despesas operacionais que eles nos empurraram para pagar e, para isso, já acionei o jurídico.

Ou seja, enquanto não acabar o Carioca – agora sem contrato de direitos de transmissão -, a briga tende a continuar.