Tão relevante é o futebol na nossa sociedade que não importa só discutir o momento em que as competições são retomadas, mas também a forma, o que se comunica a um país que já perdeu 57 mil pessoas e como cada clube se comportou. E sob este aspecto, numa sequência natural da postura correta que tiveram durante toda a discussão sobre a volta do futebol, Fluminense e Botafogo ao menos se esforçaram para tornar o processo mais palatável, mais aceitável. Porque se preocuparam com as mensagens transmitidas para além dos muros do futebol.
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Nestes tempos de polarização extrema, não custa reforçar que avaliar condutas a respeito da pandemia não implica em separar os clubes em dois grupos: modelos de comportamento de um lado, vilões de outro. Há muita coisa a consertar no futebol brasileiro, para onde quer que se olhe.
Fluminense e Botafogo, contrários à volta e adeptos de um importante discurso de proteção à vida, à saúde de seus funcionários, têm longo histórico de não cumprimento de obrigações, como os salários. Isto também vulnerabiliza famílias ? e neste ponto, a realidade do Vasco, o outro carioca a voltar à atividade ontem, é também dramática, imperdoável.
Ontem, enquanto os jovens do Botafogo faziam bom jogo, o clube, dono de um balanço que exibe de forma gritante uma situação desesperadora, garantia estar mais próximo de outro reforço internacional, o marfinense Salomon Kalou. Segundo apuração recente do GLOBO, Botafogo e Vasco fizeram seus funcionários passarem maus momentos durante a pandemia por sequer proverem planos de saúde.
Por outro lado, o Flamengo, que cumpre compromissos salariais, tem gestão eficiente e foi um dos tantos clubes a fazer ações em comunidades durante a pandemia, protagonizou um espetáculo de frieza e insensibilidade no dia de sua volta aos campos, contra o Bangu: minuto de silêncio protocolar à parte, nenhuma faixa, nenhum dizer no uniforme para as famílias enlutadas num jogo disputado ao lado de um hospital de campanha.
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O primeiro domingo desta volta açodada do futebol teve cenas bonitas, mas também uma constatação: o futebol se polarizou tanto quanto o país, tanto quanto as ruas, mesmo diante de uma emergência global de saúde.
Alinhados por conveniência à posição do governo federal, faces mais expostas do grupo que defendia a volta imediata, Flamengo e Vasco tiveram posturas semelhantes. Com a única diferença que, honrando a história inclusiva do clube, o Vasco ao menos viu seus jogadores ajoelharem em campo antes do jogo com o Macaé, em referência ao movimento global antirracista. O Flamengo nem isso fez. A camisa vascaína, assim como a rubro-negra, não trazia sequer uma tarja de luto. São Januário não tinha uma só faixa visível em homenagem a profissionais de saúde ou qualquer mensagem às famílias de vítimas. Houve apenas um jogo, frio assim.
Já o Botafogo, além de optar por usar camisas negras em sinal de luto, carregou no uniforme mensagens antirracistas e solidárias a quem batalha na linha de frente dos hospitais. Seus jogadores ajoelharam já com a bola rolando, num gesto forte. O Fluminense entrou em campo de preto, customizou uniformes e fez uma série de ações carregadas de simbolismo.
Aliás, quando os alvinegros se ajoelharam, ficou evidente outro sintoma sobre o nosso jogo: só um jogador da Cabofriense os acompanhou. Os demais pareciam intimidados, sem iniciativa. Aos poucos, jogadores brasileiros começam as se posicionar em questões sensíveis, mas têm dificuldade de fazê-lo quando não se enquadram na posição do elenco que integram ou, mais grave, do clube que defendem. Será que nenhum jogador do Flamengo era contrário à volta? Ou será que nenhum tricolor ou alvinegro defendia que se jogasse futebol? É curioso como, na bolha de cada clube, se criam unanimidades. A voz dos atletas poderia ter mudado a curso desta volta aos campos no Rio.
O Vasco de Ramon
As limitações físicas e a fragilidade do rival tornam precoce qualquer diagnóstico sobre o Vasco de Ramon Menezes. Mas foi possível perceber ideias na vitória sobre o Macaé. Uma delas a forma como funcionou o lado direito do ataque. Vinícius abria o campo e criava o espaço para um Yago Pikachu que infiltrava em diagonal, com ampla liberdade. Para tanto, Henrique apoiava menos pela esquerda, tentando equilibrar o time. O Vasco ficou mais com a bola e criou. Os gols de Cano foram consequência disso.
Novo desenho do Botafogo
Defendendo com uma linha de quatro homens e atacando com uma linha de três, da qual Cícero se descolava para iniciar a armação, o Botafogo fez bons movimentos com bola diante da frágil Cabofriense. Luís Henrique e Bruno Nazário tiveram bons momentos e, no segundo tempo, Caio Alexandre entrou muito bem. Sem a bola, no entanto, o time teve problemas. Se for um plano de longo prazo de Paulo Autuori, a adaptação de Cícero na última linha defensiva ainda exigirá muitos acertos.
O Flamengo endossa?
Vice de Relações Externas do Flamengo, Luiz Eduardo Baptista, nunca foi modelo de diplomacia. Nos últimos dias, ele foi além. Primeiro, cruzou com sobras a fronteira da falta de educação ao ofender o atacante Lucas Pratto. Depois, seu relato de conversas com pares da diretoria sobre o trabalho de Abel Braga transitou entre a insensibilidade, o desrespeito e a desumanidade, em especial levando em conta a história de vida do treinador. Estranho mesmo é o clube não vir a público se desculpar.
Fonte: O Globo