É provável que neste domingo, Dia Internacional do Orgulho LGBT, a maioria dos clubes da elite do futebol brasileiro se manifeste publicamente, assim como ocorreu em 17 de maio, data mundial de combate à homofobia. Mas esses posicionamentos não ocorrem porque, de uma hora para outra, as diretorias se politizaram. É fruto do trabalho de torcedores que decidiram voltar suas energias não apenas aos times, mas para fazer do esporte um espaço que os aceite.
Eles ainda estão longe desta meta. Mas, a julgar pela quantidade de torcidas que existem hoje, nunca houve tanta disposição para a luta. A maioria dos times mais populares do país contam com coletivos LGBT: o Canarinhos Arco-Íris, por exemplo, é formado pela união de torcedores de 14 clubes brasileiros, de diferentes regiões e divisões. As ações da CBF no Dia de Combate à LGBTfobia nasceram após a entidade ouvir suas sugestões.
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Os avanços não se limitam a postagens dos clubes em redes sociais. No Bahia, a LGBTricolor participa das reuniões do núcleo de ações afirmativas. Numa das iniciativas nascidas desta interação, a equipe de animadoras de torcida contou com a presença de uma mulher trans: Kauanna Villar fez tanto sucesso que participa da seleção para se tornar integrante fixa.
Pode-se dizer que o coletivo de torcedores do Bahia é o que desfruta de maior aceitação no país. Seus integrantes vão ao estádio, exibem bandeiras do movimento LGBT, já gravaram lives em rede sociais com jogadores dos times masculino e feminino e negociam uma transmissão com o presidente Guilherme Bellintani. Nem por isso deixam de sofrer resistência.
? No lançamento do CT novo, eu estava com a minha bandeira, marcando espaço. Tiraram uma foto minha e compartilharam, para meu rosto ficar marcado. Aí outro dia eu estava com uma amiga no estádio e xingaram a gente ? conta Onã Rudá, um dos criadores. ? Noto muito os olhares. Mas não me deixo intimidar. De alguma forma, percebem que a gente está ali, que temos representação.
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Estar no estádio de forma coletiva e identificada, contudo, é um privilégio dos tricolores baianos. Os grupos são mais atuantes na internet do que nas arquibancadas, onde temem ser agredidos. Pioneira da atual geração, a Galo Queer (Atlético-MG) suspendeu suas atividades, iniciadas em 2013, devido a hostilidades e ameaças.
luta nos bastidores
No ambiente virtual , as torcidas dedicam-se à luta contra a intolerância. Sua atuação nos bastidores também é importante. Eles encaminham propostas para tornar o combate mais efetivo a clubes, federações e demais órgãos envolvidos na punição à LGBTfobia, como o Ministério Púbico e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
? Estes movimentos virtuais surgem a partir de 2013, o que é simbólico porque foram as jornadas de junho daquele ano que mostraram novas formas de se fazer ativismo, com a internet e as redes sociais ? explica o jornalista João Abel, autor do livro Bicha (Ed. Primeiro Lugar), que fala da homossexualidade no futebol, das arquibancadas aos gramados, passando pela várzea.
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A atuação na internet é uma das diferenças mais marcantes das torcidas atuais para as surgidas nos anos 1970 e 1980, como a Coligay (Grêmio) e a Fla Gay. Até então, a irreverência era a marca registrada.
? Um dos entrevistados da minha pesquisa disse que talvez não tenha se incomodado com a Coligay porque eles eram folclóricos. E o que era folclórico ontem, hoje seria politizado. Essa brecha fez com que eles fossem aceitos. A imprensa muitas vezes fazia referência a serem alegres e festivos ? afirma Luiza dos Anjos, pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida, da Universidade Federal de Minas Gerais, que estudou a Coligay para sua tese de doutorado.
O direito a um lugar no estádio é a maior bandeira que os grupos levantam.
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? Quero ir ao estádio com um namorado, de mãos dadas. Quero que pessoas trans possam ir sem medo de apanhar. Que uma menina possa beijar sua namorada na hora do gol. Não é nehum privilégio. É ir como se é, sem medo de apanhar por algo que faz parte de você ? diz Willian De Lucca, membro e um dos criadores da Palmeiras Livre, nascido em 2013 e, hoje, o coletivo LGBT mais antigo em atividade.
Ao contrário da LGBTricolor, a torcida palmeirense faz questão de não ter relação com o clube. Apesar de quase todas as agremiações fazerem postagens em datas como a deste domingo, a postura no dia a dia varia muito de diretoria para diretoria.
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Quando foi filmado num momento de afeto com o namorado no Mineirão, em setembro, Yuri Senna recebeu inúmeras ameaças. Na época, a diretoria o procurou para saber se estava bem, mas não se manifestou publicamente sobre o caso. Com a troca de gestão, o tratamento mudou. Um dos fundadores do Marias de Minas (o nome é uma apropriação do apelido homofóbico usado pela torcida atleticana), ele participou esta semana de uma reunião com a diretoria para discutir possíveis ações que podem ser feitas.
? As torcidas LGBTs existem porque há uma violência a qual precisamos resistir. Nosso sonho era que o Marias de Minas não precisassse existir, que a torcida do Cruzeiro fosse plural por si só ? resume Senna.
Fonte: O Globo