Melhores do mundo em suas modalidades, o tenista Novak Djokovic e o piloto Lewis Hamilton ocupam as manchetes mesmo durante a paralisação das competições por conta da pandemia do coronavírus. Em vez das conquistas nas quadras ou nas pistas, o que reverbera agora é a forma com que lidam com questões urgentes de nosso tempo: a ameaça do vírus e os protestos antirracismo após a morte de George Floyd, um cidadão negro, por um policial branco nos EUA. Apenas um deles, porém, sairá desse período de exceção com a imagem intocada.
No último domingo, Hamilton era uma entre as milhares de pessoas que se reuniram no Hyde Park, em Londres, para mais um protesto do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Não foi reconhecido, porque cobria o rosto com um pano. Mas fez questão de postar registros do ato nas redes sociais. “Fiquei muito orgulhoso de ver pessoas de todas as raças e origens apoiando esse movimento?, escreveu.
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Um dia antes, ele anunciara ao jornal britânico “The Times? a criação da “Hamilton Commission?, que terá como missão ampliar a diversidade no automobilismo através de suporte educacional e profissional para pessoas negras nas áreas de ciência e tecnologia.
? Apesar do meu sucesso no esporte, as barreiras que tornam a F1 altamente exclusiva persistem. Não basta apontar para mim ou para uma única contratação de um negro como exemplo de progresso. Milhares são empregados por essa indústria, e esse grupo precisa ser mais representativo da sociedade ? justificou o piloto, até hoje o único negro campeão da Fórmula 1.
EM VÁRIAS FRENTES
O ativismo de Hamilton, 35 anos, não é recente, muito menos limitado a um tópico. Ele é embaixador das Organizações das Nações Unidas (ONU), já capitaneou projetos que pretendem aumentar a presença de mulheres no automobilismo e tem pressionado sua equipe, a Mercedes, a encontrar soluções menos poluentes. Nos negócios, lançou uma rede de fast food vegano, após ele mesmo aderir ao vegetarianismo, e criou uma linha de roupas que prioriza a utilização de materiais sustentáveis.
No início deste ano, ele anunciou uma doação de cerca de R$ 2 milhões à Austrália, afetada pelos incêndios florestais que mataram dezenas de pessoas e mais de um bilhão de animais. Dois meses depois, quando esteve no país para o GP de Melbourne, fez questão de visitar pessoalmente as áreas atingidas. Nessa mesma viagem, confrontou os interesses da F1 ao criticar a realização da corrida em meio ao avanço do vírus. “O dinheiro manda?, ironizou o hexacampeão da categoria.
O GP acabou cancelado, e a temporada da Fórmula 1 começará, em versão reduzida, no dia 5, na Áustria. Hamilton está a um título de igualar Michael Schumacher, maior vencedor da F1.
Postura bem diferente em relação ao vírus teve Novak Djokovic, dono de 17 títulos de Grand Slam e candidato a ultrapassar Roger Federer (20) e Rafael Nadal (19) no ranking dos maiores vencedores de todos os tempos.
Embora a Europa ainda esteja se recuperando da primeira onda de contaminações, o sérvio julgou que poderia reunir alguns dos principais nomes do circuito para um torneio beneficente na região dos Bálcãs. Mais que isso: permitiu que até 4 mil pessoas se aglomerassem nas arquibancadas ? a maioria sem usar máscaras ? e se juntou aos amigos em ações promocionais e até festas em boates.
O vírus, que não aceita desaforo, rapidamente se espalhou entre os tenistas e pessoas ligadas a eles. Até dez infecções provavelmente ligadas ao Adria Tour foram confirmadas, incluindo a do próprio sérvio e de sua mulher. Também testaram positivo o búlgaro Grigor Dimitrov, 19º do mundo, o croata Borna Coric (33º) e o sérvio Viktor Troicki (184º). Tiveram mais sorte o austríaco Dominic Thiem, em 3º, e o alemão Alexander Zverev, o 7º.
Após seu próprio diagnóstico para Covid- 19, Djoko se desculpou, admitindo, em nota, que era “muito cedo? para realizar o torneio.
MUITO POUCO, MUITO TARDE
A obviedade dessa constatação, porém, impediu que o sérvio fosse absolvido. Ele foi criticado por companheiros de circuito, como o duplista brasileiro Bruno Soares e o bad boy australiano Nick Kyrgios. Também foi repreendido pelo presidente da Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), Andrea Gaudenzi.
O ex-tenista Fernando Meligeni também não poupou Djokovic e observou que sua situação se agrava pela combinação de três fatores: além de ser o anfitrião do evento e número 1 do mundo, o sérvio é um dos representantes dos atletas na comissão que discute os temas ligados ao esporte e ao circuito. Tamanha irresponsabilidade é incompatível com a posição e pode afetar a imagem que se tem dele, mesmo que se torne o maior vencedor da história.
? A imagem de um atleta não é apenas ganhar ou perder. Ou mesmo uma atitude boa ou ruim. Ela se constrói com o tempo. Federer já errou, mas olha tudo o que já fez. Como lutou pelo circuito e por jogadores mais baixos (no ranking), como ele é agradável com as pessoas e querido no vestiário… ? disse Meligeni ao GLOBO.
Também joga contra Djoko, 33 anos, seu histórico controverso com a ciência. No início da pandemia, ele se declarou contrário à obrigatoriedade de vacinação para a Covid-19. Dias depois, declarou que o “poder da oração? era capaz de transformar água poluída em substância curativa.
Em 2017, relutara em operar uma lesão no cotovelo por acreditar em métodos curativos. Rendeu-se à mesa cirúrgica no ano seguinte. E, apesar de ter chorado por três dias por acreditar que havia “falhado consigo mesmo?, celebrou a conquista de dois Grand Slams no fim da temporada.
Hamilton e Djokovic têm a chance de entrar para a história como os maiores de todos os tempos em suas modalidades. Somente um deles, porém, parece ciente de tudo o que é preciso para chegar além.
Fonte: O Globo