Após a decisão do STJD, o Botafogo voltará a jogar futebol depois da pausa pela pandemia do novo coronavírus no próximo domingo, às 11h, contra a Cabofriense. Para o técnico Paulo Autuori, porém, o alvo é outro. É justamente quem organiza o campeonato, a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj). Irritado e decepcionado com a forma com que foi tratado o retorno aos gramados, o técnico deu ao GLOBO declarações fortes e, sem filtro, emitiu sua opinião.
Acha que é hora de mudanças na direção do futebol carioca, crê em jogo de cartas marcadas no Estadual e contou que chegou a pedir demissão do clube, não por discordar das posições do alvinegro, e sim por não querer participar da retomada. Foi convencido pela diretoria a ficar, e vai dirigir o clube no fim de semana.
– Mas coloca que vou sob protesto. Não aceito passar por bobo e otário.
Como recebeu decisão do STJD de marcar jogo do Botafogo para domingo de manhã, com oito dias de treino depois de três meses parados?
O presidente do STJD chamou o especialista da USP e o médico da CBF para fazer um parecer técnico. E eles foram claros que precisava de pelo menos três semanas (para voltar a jogar). Aí o cara chama, ninguém sabe pra quê e não tem minimamente um critério técnico pra tomar a decisão. Foi pelo aspecto político, na minha perspectiva. Marcar a partir do dia 28… Não dá para entender direito. Não vou dizer que foi uma surpresa porque eu não espero coisas diferentes. Tem sido constante tomadas decisões que fogem completamente do bom senso. Se os técnicos disseram que era preciso três semanas…
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E como você avalia a atuação da Ferj?
Ferj para mim não é a Federação do Estado do Rio de Janeiro, é a federação dos espertos do Rio de Janeiro. Não têm parâmetro nenhum, vivem aqui nessa coisinha futebol do Rio, no campeonato sem público. Só dá público nas semifinais e finais de turno. Eu conheci três presidente de federação, que foram Otávio Pinto Guimarães, depois passou o Eduardo Viana e agora o Rubens Lopes. E eu não vejo qualquer tipo de evolução. É uma federação que não tem ideias. O que eu acho é que é uma grande mamata ali. Um feudo. Não vejo absolutamente nada em termos de ideias. Enquanto a federação paulista tem ideias e tenta coisas novas. Enquanto eu estava no Santos, eles convocavam dirigentes, treinadores, preparadores físicos, sabe? Escutavam todos para formular a tabela do campeonato. Aqui na federação carioca eles definem por eles próprios.
Você quer dizer que a Ferj não pensa no bem do futebol do Rio, e só no dela, ao contrário de São Paulo?
Exatamente. Beneficiar a eles próprios. Você vê… o Bandeira (ex-presidente do Flamengo) estava brigado com a federação. Aí eles criavam problema com a administração do Bandeira. Saiu, entrou o Landim. E o Landim está babando o ovo dele… Então eles só têm como objetivo o interesse deles próprios. A outra coisa é o seguinte: jogadores são descartáveis. Não há a mínima preocupação de salvar a integridade dos jogadores quando você define uma volta completamente fora de propósito, onde todo o Brasil tem os mesmos problemas. Tem os problemas dos contratos das equipes pequenas. Você vê a Inter de Limeira, lá em São Paulo, perder jogadores. O Mirassol perdeu jogadores. E você não vê esse açodamento em voltar. Então não vejo qualquer justificativa que faça o Carioca voltar agora. E campeonato vai ter que parar para esperar o Brasileiro começar. E ele só vai começar quando os outros Estaduais terminarem. Então o que vai se fazer neste tempo parado, quando seria muito mais sensato, em ritmo de jogo, terminar logo os Estaduais e começar o Brasileiro? Todos vão fazer isso, menos o Carioca.
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O Nelson Mufarrej (presidente do Botafogo) falou que você se demitiria se fosse obrigado a voltar a jogar em junho. Você chegou a pensar nisso mesmo?
Eu pedi pra sair. Ontem (quarta-feira) é que decidi que não ia mais, porque me convenceram que podia prejudicar o Botafogo. O que ele falou foi a verdade. Apenas senti o quão difícil poderia ser para eles e eu tive que me sacrificar para não prejudicar. Mas meu objetivo era não dar continuidade. Dizer: não quero participar disso. Isso é uma bandalheira que está acontecendo. A federação chamou os clubes pra tomar decisão deixando Botafogo e Fluminense de lado, convocando reunião na calada da noite, às escondidas. Eu acho que esse campeonato é carta marcada.
Em que sentido?
O que te leva a marcar jogo às 11h da manhã com os times voltando de 90 dias (parados)? Eu quero colocar essa questão. Por que o jogo do Botafogo foi marcado para às 11h da manhã? Não pensei em sair. Eu saí mesmo. Fiquei dois dias e ontem (quarta) à noite em reunião com o comitê gestor. Ontem, que decidi voltar.
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Como você vê o papel dos clubes que tentam acelerar a volta do futebol?
É uma situação que já ocorre há muito tempo na federação carioca, porque isso representa voto. Até clube de várzea tem voto. E eles vão mudando conforme os interesses. Antes era brigado com o Flamengo, agora está ligado. Vão se movendo de acordo com os interesses deles para manter essa mamata. Está na hora de mudar a federação. Mas há muita dificuldade para mudar paradigmas. Estamos passando vergonha ao tentar apressar esta situação. O que eles querem? Mostrar para outras federações que podem fazer as coisas, forçar uma situação para que outras também apressem o retorno? Aí você vê a vigilância sanitária: o Flamengo começou a treinar antes da liberação combinada e a vigilância sanitária bateu lá e estava fechado. A gente aqui fica fazendo papel de bobo. Acho que eles se sentem os espertalhões. A coisa é tão evidente, esta manipulação toda, este conluio que existe. Não há justificativa, não consigo ter uma resposta.
Você acha que aquele clichê de que o futebol representa a sociedade na hora de encarar a pandemia válido para o momento?
Os exemplos que vêm lá de cima são maus exemplos. No Rio de Janeiro você vê os problemas de governadores presos, Tribunal de Contas com problemas. Trabalhei em outros estados e coisas são mais organizadas. Aqui é um oba-oba violento. Há um ciclo vicioso, federação ajuda um clube para pagar uma folha de salário e fica na mão dela. Quando os clubes vão ter autonomia para tomar decisões de acordo com sua história? Está clara a falta de preparo das pessoas que estão na federação do Rio. Enquanto a federação paulista tem gente do ramo, pessoas como o Mauro Silva, cujo trabalho é de tirar o chapéu… os caras acham que tem sempre uma brecha ali… a Ferj nunca tem responsabilidade. É o momento de mudar. Chega ligação de gente de fora perguntando o que está acontecendo. Tivemos a oportunidade de ver o que se passava no mundo em relação à pandemia, nós teríamos chance de nos prepararmos. Esse açodamento de voltar ao campeonato não tem justificativa. Alguém está preocupado com o futebol do Rio? Quem vai sofrer se acontecer alguma coisa com um profissional? São os clubes. É falta de preparo da federação, para manter todo esse status quo que interessa, nunca tentaram nada de positivo, de diferente, nunca saíram da casinha.
“A coisa é tão evidente, esta manipulação toda, este conluio que existe?
Surgiram teses de que o Botafogo não gostaria de voltar por conta da crise financeira. Agora mais recentemente, surgiu a questão com a vigilância sanitária, que o clube não teria se adequado direito. Você, que trabalha lá dentro, como vê isso?
A verdade é a seguinte: quando você autoriza uma coisa, não quer dizer que as pessoas têm que seguir aquilo tudo. Botafogo e Fluminense não acharam que era o momento; por esse motivo, optaram por não colaborar para a volta de algo que eles não concordam. Simples assim. Se alguém aqui segue orientações da ciência, esses são os clubes que acreditam que agora não seja hora de retornar. Da mesma forma que eles têm o direito de impôr à volta do futebol, temos nós de não concordar e nos preparar para isso.
Os maiores prejudicados com uma volta apressada são os atletas. Ao mesmo tempo, é muito pouco observado qualquer posicionamento deles sobre o assunto…
Muitos deles são ameaçados e ficam receosos de falar qualquer coisa, essa é a realidade. Por isso aqueles que tem maior peso deveriam tomar frente, porque os atletas não saber a força que têm. Por parte de alguns membros da federação do Rio, houve uma enorme falta de respeito com comentários sobre os clubes; o Botafogo é um clube histórico, como seus coirmãos também são. Tem que respeitar! É muito baixo nível.
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Na Europa, muitos jogadores se posicionaram, por exemplo, contra o racismo. Como você vê esse engajamento político dos atletas?
Isso não se restringe somente ao Rio. É no Brasil inteiro. A classe dos jogadores é fortíssima, mas eles ainda não se deram conta desse poder. Aqui, ficamos sem futebol um tempo e foi notório o falatório que isso gerou. Por causa de uma pandemia! É comum, por exemplo, na Argentina, o campeonato ser paralisado em solidariedade dos jogadores de outros times a colegas que estão sem receber em determinado clube. No momento que vivemos, no meio de algo tão grave, no qual há necessidade de você cuidar de você e do próximo, era um ótimo momento para vermos algo do tipo. A questão é que a federação e quem organiza o campeonato está se lixando para o próximo. Os interesses falam mais alto do que qualquer instinto básico de solidariedade. É importante que fique registrado que, aqui, você quer reinar, enfraquecendo os outros. Há o desejo de ganhar, tornando os outros mais fracos. E o nome disso é mediocridade.
Há uma má gestão de expectativa, no qual promete-se muito, algo do tamanho da tradição e da grandeza do clube, mas, pela realidade sobretudo econômica, entrega-se pouco. Diante da situação do Botafogo apresentada no último balanço, como você pretende se comunicar com o torcedores das reais expectativas, por exemplo, da atuação no Brasileirão?
Como eu sempre me comunico: com a verdade e transparência, seja ela qual for. Isso que existe no futebol brasileiro é um ciclo vicioso: um clube qualquer possui uma história gigante – como é o caso do meu clube, mas também de tantos outros no país – precisa ter uma performance à altura de sua rica história e é isso que dele é cobrado. Precisa ganhar, precisa vencer. Aí acontece dos gestores meterem os pés pelas mãos. Acredito que, na maioria das vezes, o projeto até se inicie com uma boa ideia de gestão, mas, como os resultados não vêm, é um caminho tentador começar a fazer coisas que não devem ser feitas, como trazer jogadores com custos altíssimos sem a capacidade de honrar com isso ou provocar um desequilíbrio das contas do clube. Antecipam-se receitas, pede-se ajuda às federações e cai naquilo de justamente se tornar “refém” dos mandos e desejos dessas entidades. Consequentemente, perdendo a sua autonomia de gerir o instituição da melhor maneira possível. Por isso que a gestão Bandeira, no Flamengo, precisa ser elogiada, por não necessariamente ser focada em títulos, mas resgatar autonomia do clube e preparar o terreno para conquistas futuras. É preciso, acima de tudo, coragem para falar a verdade.
Como você vê alguns acenos da diretoria do Botafogo a jogadores como, por exemplo, o marfinense Yaya Touré e o holandês Robben?
Isso aí, eu nem comento. Eu não vendo ilusão. Todo mundo sabe que o Botafogo tá num período de transição. É de conhecimento público que não poderíamos mais continuar na maneira e na situação que estávamos. O modelo aprovado pelo Conselho do clube de terceirização do futebol é algo totalmente plausível, feito para reerguer o Botafogo.
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Como dizer então a verdade para o torcedor do Botafogo então na temporada?Você não pode pensar apenas na gestão esportiva. Chegou o momento em que o Botafogo tem que pensar na gestão do clube da melhor maneira possível. A gestão do clube pode mudar no meio da temporada e a gente tem a obrigação de pavimentar a estrada para quando entre o novo modelo, para que as coisas estejam caminhada. Temos que ser pragmáticos. O futebol permite tudo, quem achava que o Botafogo seria campeão em 1995? Temos que fazer uma temporada tranquila para a entrada da nova gestão.
Se o projeto da Botafogo S/A vingar, você se vê participando?Eu pedi para contribuir com o Botafogo nesse momento de transição. É uma situação transitória, porque eu não tenho mais interesse em trabalhar como treinador no Brasil. Quando acontecer, vou pensar naquilo que vai ser proposto, se eu puder dar alguma contribuição.
Fonte: O Globo