Em uma entrevista à ESPN, Guardiola disse que um livro, um filme ou um time de futebol são especialmente bons quando se passam 20, 30 ou 40 anos e ainda se fala neles com admiração, carinho. Porque o futebol é emoção, são as sensações despertadas. Neste 21 de junho, serão 50 anos em que o mundo fala sobre a seleção brasileira de 1970 como símbolo de um tipo de jogo jogo que apaixona. Talvez este seja um título maior do que a taça Jules Rimet, trazida em definitivo para o Brasil após o tricampeonato mundial no México.
Copa de 1970: Brasil 3 x 1 Uruguai, como Clodoaldo abriu a defesa celeste
É difícil explicar por que nos apaixonamos. Mas talvez seja possível enumerar a farta lista de atributos que fizeram aquele time despertar emoções em tantas pessoas. A começar, é claro, pela reunião de talentos, mas também passando pelas circunstâncias históricas, pelo contexto. Por uma série de aspectos, é quase irrepetível aquele agrupamento de criadores voltados para o gol adversário.
Copa de 1970:Brasil 4 x 2 Peru, dois gênios se falam pelo olhar na goleada
Primeiro, porque não é simples ver tanto talento nascer numa mesma geração ou, respeitadas as diferentes idades dos jogadores, ver tantas capacidades técnicas se juntarem num mesmo time de futebol. E também porque nunca mais veremos uma seleção se preparar para uma Copa do Mundo como aquele Brasil pôde se preparar. Reuniu-se em fevereiro para jogar em junho, e só isso permitiu que jogadores teoricamente não complementares, um “excesso de camisas 10”, pudesse terminar por formar um time tão harmônico.
Copa de 1970:Brasil 1 x 0 Inglaterra, a constelação de craques em um dos grandes clássicos da história
Mesmo tendo convivido com uma troca de treinador, o Brasil jogou 13 amistosos desde que iniciou os treinos e não mais se separou até a Copa. Examinando possibilidades, testando, praticando, Zagallo, que só assumiu em março, foi descobrindo o espaço de cada um. Em abril, surge a solução com Piazza na zaga e Pelé e Tostão juntos, respondendo à pergunta que todo o país se fazia àquela altura: se os dois, em tese habituados à mesma faixa do campo, poderiam formar uma dupla. Foram quatro jogos e 40 dias de treinos com este molde de equipe. Hoje, seleções treinam, quando muito, 20 dias para um Mundial.
A reunião de talentos é decisiva na perpetuação das memórias desta equipe. E permitiu a produção de joias, de lances para a história do jogo. E de um time voltado para o ataque como raramente se veria dali por diante. E aí há outro aspecto que explica a paixão despertada pelo time do tri. Um ponto de partida para esta análise pode ser a definição do jornalista inglês Jonathan Wilson em seu livro “A Pirâmide Invertida”. Para ele, o Mundial de 1970 marca “o final da era da inocência” no futebol.
O jogo já vivia um duelo filosófico entre ataque e defesa, força e arte. Décadas depois, ficaria claro o quanto são complementares. Mas a Copa de 1966 representara um triunfo da ordem, da disciplina, de uma certa negação de espaços e aumento da velocidade nas ações. Pelé saíra do Mundial aos pontapés de adversários. O Mundial de 1974, com a Holanda de Rinus Michels e Cruyff, veria a aposta na pressão sobre a bola e na compactação dos times. A Copa de 1970, com suas circunstâncias especiais, ficou no meio do caminho, devolvendo ao jogo, por um momento, uma espécie de triunfo puro da técnica.
Copa de 1970:Brasil 4 x 1 Tchecoslováquia, os primeiros sinais de um time à frente de seu tempo
A soma de altitude e calor do México reduzem um pouco o ritmo. E, em grande medida, realçam as qualidades técnicas individuais porque dão aos grandes craques tempo e espaço. A tudo isso, o Brasil somou uma longa preparação, uma ênfase na capacidade física para resistir às condições naturais e uma mobilidade de equipe como raramente se via à época. Algo que dava movimento e fluência ao jogo. Tudo isso propiciou aos talentos a produção em série de momentos de arte. Era como um respiro numa era do futebol que ameaçava se tornar sisuda. E a final com a Itália, por mais que os rivais brasileiros na final não fossem apenas marcação, carregava o simbolismo da arte contra a disciplina. E como lembra o mesmo Jonathan Wilson, tudo isso na primeira Copa que boa parte do mundo viu a cores. É simbólico demais. E o fato é que, nunca mais, por maior vocação ofensiva que tivessem as equipes que venceram Copas, se veria num Mundial o triunfo de uma seleção que pendesse tanto para o ataque e concedesse tanto na defesa.
Copa de 1970:Brasil 3 x 2 Romênia, um massacre de 25 minutos
A final, no entanto, não é uma mera celebração do virtuosismo brasileiro como sugere o placar de 4 a 1. É um jogo duríssimo até o 2 a 1. Mas também muito condicionada pelo movimento brasileiro contra a escola de marcação italiana. Pode parecer estranho começar a falar do jogo pelo fim, mas o gol de Carlos Alberto Torres tornou-se peça tão icônica que vale a pena contextualizá-lo. A Itália não abria mão de uma defesa que marcava através de perseguições individuais o tempo todo: Burgnich, que era um lateral-direito ou zagueiro, seguia Pelé; o zagueiro Rosato seguia Tostão; o lateral-esquerdo Facchetti correria atrás de Jairzinho até no vestiário, se fosse preciso.
Brasil x Itália:Assim os derrotados relembram
Não existe certo ou errado em futebol, mas potencialidades e riscos em cada ideia. A marcação era dura, mas ao fim das contas a seleção brasileira foi entendendo que os defensores da Itália estariam posicionados não onde gostariam, mas onde os atacantes do Brasil determinassem. Aos poucos, Jairzinho saía da ponta, Tostão e Pelé faziam seus movimentos habituais… Naturalmente, o espaço surgiria. Carlos Alberto Torres aparece correndo pela direita num aparente deserto de italianos justamente porque o Brasil sobrecarregara o lado esquerdo do ataque. Rivelino, Tostão, Pelé, cada um arrastando seu marcador, estavam na metade esquerda do ataque do Brasil. Quando o capitão brasileiro chega para um dos chutes mais famosos da história do jogo, Facchetti, o lateral-esquerdo, está com Jairzinho do outro lado do campo. Tudo isso após quatro dribles seguidos de Clodoaldo, lançamento de Rivelino, passe de Jairzinho e um toque de Pelé.
O primeiro tempo fora duro, com mais volume brasileiro mas nem tantas chances. A Itália, por sua vez, chegara três vezes com perigo diante de uma seleção que não se defendia tão bem. Félix chega a fazer acrobacia para salvar um chute de Riva. Mas os italianos eram tão devotados a sua forma de marcar que, quando Tostão foi cobrar um lateral perto da área, lá estava Rosato à sua frente, na marcação individual. Rivellino cruzou e restou a Pelé o duelo com Burgnich, seu par constante, pelo alto: gol do Brasil.
Um erro de Clodoaldo em saída de bola ocasiona o empate e leva a um segundo tempo em que o duelo de ideias fica mais claro. A Itália passa a querer o contragolpe e o Brasil tenta ficar com a bola para criar. São 45 minutos espetaculares de Gérson ditando o jogo, mas também de um susto quando Dominghini escapou em velocidade e quase marcou após desvio em Everaldo.
Ocorre que, diante do tipo de marcação italiana, outra opção era a chegada dos homens de trás. Gérson, brilhante na distribuição do jogo, desferiu o tiro do 2 a 1 da entrada da área. Pouco depois, com tempo e espaço, acertou primoroso lançamento para Pelé oferecer o gol a Jairzinho. Aquele Brasil tinha troca de passes curta, lançamento longo, contragolpe… Um repertório inesgotável com uma reunião de intérpretes formidável.
Clodoaldo era tudo o que se imagina ver num meio-campista do século XXI, capaz de jogar de área a área; Gérson, em especial quando lhe davam tempo e espaço, tinha o passe, o lançamento, o chute; Rivelino saia da esquerda para o centro como um destes meias ofensivos que partem do lado do campo no 4-2-3-1 atual, com passe, drible e chute; Tostão era cerebral, dono de uma leitura de jogo que lhe permitiu, no espaço de uma Copa, se reinventar e passar do meia que via o gol rival de frente ao “falso 9” que interpretava a partida de costas para o goleiro adversário; Jairzinho era a potência física e o drible em progressão que permitia ganhar as costas da defesa adversária e dar ao Brasil a opção do jogo mais direto, do contragolpe. E Pelé? Era tudo isso reunido num só atleta.
Na prática, a disputa acabou naquele terceiro gol. Mas não o jogo, porque depois viria o lance de Carlos Alberto, que virou emblema de um time que resiste ao tempo. Se é possível recordar com carinho equipes que não foram campeãs, também é evidente que nem toda vitória é igual. A forma importa, porque por vezes o futebol é um jeito de se expressar. Quando um time produz sensações que perduram meio século no coração de tanta gente, fica claro que o resultado é apenas parte da construção de um time eterno.
Fonte: O Globo