Um dos argumentos a favor da volta dos jogos tratava da possibilidade de criar uma bolha de segurança em torno dos profissionais envolvidos nas partidas. Poderosa, a tal bolha. É capaz até de  isolar o futebol do mundo ao seu redor, do senso de realidade, de qualquer gota de sensibilidade e empatia. Por alguns momentos, o Flamengo x Bangu jogado no Maracanã pareceu um exercício de gente disposta a provar que o drama que o Brasil atravessa não lhes diz respeito.

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Em meio a tanto açodamento para fazer a roda girar, este Flamengo x Bangu foi marcado com pouco mais de 48 horas de antecedência e confirmado de véspera. Mas houve tempo para cumprir todos os compromissos comerciais: as placas de publicidade reluziam, o pórtico do Campeonato Carioca que aguarda os times estava em seu lugar antes do jogo… Mas não sobrou lugar, fosse ao redor do campo, fosse nas arquibancadas vazias, para qualquer referência às famílias enlutadas. Tampouco, por incrível que pareça, aos profissionais de saúde que se expõem ao risco e se submetem a uma maratona com alto custo físico e mental para tentar salvar vidas. Nem os uniformes dos times, com seus tantos patrocinadores, preservaram um lugar para a solidariedade ou um sinal de luto ? só o Bangu carregava uma fita na manga da camisa. Toda a noite pareceu planejada como uma desconcertante frieza.

Foi certamente uma das mais deprimentes noites da história do Maracanã. A noite do futebol a qualquer custo para satisfazer interesses comerciais e tramas políticas poderosas. Não parecia importar, sequer, que, no hospital de campanha montado no interior do complexo do estádio, a poucos metros do campo, morreram duas das 274 pessoas vitimadas ontem, dia do jogo, pela Covid-19.

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Tudo parecia fora de lugar. A chegada dos times coincidiu com a troca de turno dos funcionários do hospital. Incomparável, neste momento, a importância da missão de uns e de outros. Por outro lado, é importante registrar que o entorno do Maracanã não deixava dúvidas: o futebol é apenas uma das faces de uma cidade que decretou por conta própria o fim da pandemia. Ciclovia cheia, pequenas aglomerações, gente sem máscara e um pequeno grupo reunido para ver o ônibus do Flamengo chegar. O Rio saiu da quarentena e o futebol pegou carona por conveniência.

A única referência à maior tragédia do país em um século foi o protocolar minuto de silêncio, que interrompeu a música de boate do sistema de som do Maracanã. Uma vez respeitado, voltou à total vigência a lei segundo a qual o futebol não tem tempo para dramas que extrapolem o seu universo. Nem o racismo teve vez. Não houve jogador de joelhos ou qualquer outra menção à luta global cotra o preconceito e a opressão.

Jorge Jesus orienta o time; ao fundo, staff do Flamengo mantém distanciamento na arquibancada Foto: RICARDO MORAES / REUTERS
Jorge Jesus orienta o time; ao fundo, staff do Flamengo mantém distanciamento na arquibancada Foto: RICARDO MORAES / REUTERS

Por mais irrelevante que pareça a esta altura, houve um jogo no gramado do Maracanã, vencido pelo Flamengo por 3 a 0. Então, é dever dedicar algumas linhas ao campo. Foi quase um exercício de ataque contra defesa, que permitiu avaliar que os três meses de inatividade não tiraram algumas características do time de Jorge Jesus. Mas também, ficou claro que, por mais que o Flamengo tenha antecipado sua volta aos treinos e tenha se preparado bem, seria anormal repetir todas as suas virtudes após tanto tempo sem jogar.

O que o Flamengo não perdeu foi a capacidade de sufocar o rival contra sua área. Com a linha defensiva rubro-negra jogando por vezes além do meio-campo, o Bangu não conseguia sequer respirar. Os rubro-negros pressionavam como de hábito, recuperavam rapidamente a bola e faziam o jogo ocorrer em metade do campo.

No entanto, o time tinha muito volume e poucas chances reais. O Bangu se fechava com uma linha de cinco defensores e o Flamengo rodava a bola sem encontrar tantas brechas para infiltrar. Pouco antes dos 15 minutos, Jorge Jesus fez Arrascaeta jogar mais pelo centro, próximo a Gabigol, abrindo Bruno Henrique à esquerda. Foi por ali que o uruguaio encontrou o rebote de um cruzamento de Rafinha. A ideia talvez fosse fazer Arrascaeta flutuar entre as linha de defesa do Bangu e tentar o último passe em profundidade. Mas o Flamengo tinha dificuldade de transformar o volume em chances.

Um panorama que não se alterou no segundo tempo, apesar do controle absoluto. Mas bastou o Bangu conseguir sua primeira finalização que, como efeito colateral, ofereceu ao Flamengo a primeira chance de encaixar uma jogada em transição rápida. E com espaço, é ainda mais difícil parar o time rubro-negro. Eram 20 minutos do segundo tempo quando Gabigol cruzou para Bruno Henrique ampliar.

O Bangu abriu mão dos três zagueiros, desmontou sua linha de cinco e até encerrou a inatividade pós pandemia de Diego Alves, que pegou sua primeira bola no jogo perto dos 30 minutos. Mas assumia o risco de oferecer a chance de o Flamengo jogar em velocidade. O terceiro gol, aliás, veio no lance mais bem construído da noite, com Gabigol outra vez no papel de assistente: ele achou Pedro Rocha para o 3 a 0.

É possível que, encerrado o jogo, defensores da bolha do futebol declarem vitória. Mas muita gente os fará lembrar que, entre interesses comerciais e políticos, instituições  populares, importantes, cheias de história e de fortes vínculos com suas comunidades foram conduzidas a protagonizarem uma noite mórbida, de mau gosto. E acima de tudo insensível.