Se todos os presidentes dos clubes das Séries A, B e C fossem reunidos para uma foto, não seria difícil identificar Sebastião Arcanjo. O mandatário da Ponte Preta é o único negro deste grupo de 60 pessoas. Ainda assim, ele já se acostumou a não ser reconhecido no meio do futebol. A cor da pele, que o diferencia dos demais dirigentes, já fez com que ele não fosse tratado como um por recepcionistas, garçons e outros envolvidos na realização de eventos.
– Já passei por muitos episódios assim. Mas a vida vai deixando a gente cascudo. Dá para ir para cima do zagueiro e driblar – conta o dirigente, também conhecido como Tiãozinho.
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Não se abater com estes episódios parece ser uma defesa adquirida ao longo de anos de militância contra preconceitos. O presidente da Ponte já foi vereador de Campinas e deputado estadual de São Paulo, sempre pelo PT. Hoje, embora não ocupe nenhum cargo no legislativo, é filiado ao PCdoB. Suas ações não tinham como alvo apenas o racismo, mas também outras opressões a minorias, como o machismo e a homofobia.
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Não chega a ser coincidência que o único presidente negro das três primeiras divisões nacionais seja da Ponte Preta. O clube campinense clama para si o título de primeira democracia racial do país. Isso por ter contado com pessoas negras não só em seu primeiro time como também entre seus fundadores, há quase 120 anos (a serem completados em 11 de agosto).
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Diante desse histórico, foi natural que a Ponte tenha atraído atenções quando a onda de manifestações desencadeada pelo assassinato de George Floyd, nos EUA, chegou ao futebol brasileiro. O manifesto da Macaca (apelido preconceituoso criado pelos rivais, mas apropriado pelo clube) foi um dos mais contundentes no esporte. “Quantos mais precisarão morrer antes que as pessoas enfrentem de frente o fato de que, mais do que uma imbecilidade e um crime, o racismo e o preconceito são um mal que precisa ser extirpado pela raiz?”, questiona a nota.
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– Um dos grandes equívocos do futebol é achar que, pela paixão envolvida, ele tem uma ética à parte da sociedade. Esse é um dos principais entraves para fazermos a discussão. Seja porque muitos não querem enfrentar esse debate, seja porque muitos não se reconhecem como negros – opina Arcanjo.
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Como vê a atual onda de manifestações antirracistas?
Os casos do Floyd, nos EUA, e do João Pedro, no Rio, criam uma possibilidade de movimentar milhões. Essa luta adquire caráter antirracista quando junta pessoas, independentemente da cor da pele, que resolvem usar toda sua força e capacidade de comunicação. Estamos falando de artistas, de pessoas que praticam outras atividades esportivas, de intelectuais… Isso se transformou num movimento.O racismo no Brasil afeta a população negra de uma forma muito forte. Mas só será resolvido quando toda a sociedade entender que precisamos eliminar este câncer.
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E a repercussão que ela teve até agora no Brasil?
Vejo com bastante otimismo. Porque a política de guerra às drogas se revelou um verdadeiro fracasso. Fez com que a polícia no Brasil e no mundo inteiro utilizasse mais a violência como instrumento de combate e que é invariavelmente seletiva quando escolhe a população negra como alvo principal. Ela foi associada a comportamentos que levam até hoje as estruturas de formação da polícia militar a tipificar negros como criminosos potenciais. Essa é uma das heranças do que chamamos de abolição inacabada.
As atitudes tomadas hoje pelo futebol são suficientes para combater o racismo?
O futebol concentra um número efetivo de negros dentro das quatro linhas, mas nas comissões técnicas e nos órgãos de direção, é praticamente inexistente a presença do negro. É a reprodução sofisticada do que chamamos de racismo estrutural. Conversei com o presidente da CBF esta semana. O (Rogério) Caboclo me ligou porque sabe que a Ponte tem esse engajamento. Conversamos sobre avanços promovidos do ponto de vista de trazer o debate do racismo para o futebol. Neste sentido, foram muito positivas as decisões da CBF e da Fifa até agora.Acho que foi um passo importante. E outras ações serão aplicadas no próximo período. Só que é preciso mais medidas que possam levar a aplicação de penas como perdas de ponto e eliminação da competição. Mas sei que é muito querer que o futebol sozinho resolva um problema que é da formação cultural do povo brasileiro.
Infelizmente, não temos no governo federal alguém que possa liderar esta agenda. Pelo contrário. O presidente da Fundação Palmares (Sérgio Camargo) faz gol contra quase todo dia. E se constitui num obstáculo ao não reconhecer o racismo e entender que a escravidão foi benéfica à sociedade. É o jogador que não seria relacionado nem como gandula.
“O presidente da Fundação Palmares (Sérgio Camargo) faz gol contra quase todo dia. É o jogador que não seria relacionado nem como gandula?
Há diálogo sobre o combate ao racismo entre os clubes?
Conversei muito com o pessoal do Bahia. Estive lá antes e eles vieram aqui em Campinas. Acho que têm tido iniciativas interessantes. Falamos também com o pessoal do Corinthians e do Guarani. Acho que podemos promover algumas atitudes em relação às torcidas. Foram conversas no sentido de trocar experiências e pensar em campanhas. Não acredito que, num passe de mágica, vamos mudar todos os problemas da humanidade. Mas são passos firmes e necessários que promovem uma mudança de ambiente e passam a sociedade uma nova visão de mundo, com respeito e tolerância.
Como entrou para a vida política da Ponte Preta?
Como todo garoto pobre, preto e de periferia, não tinha grana para ingresso. Então a gente ficava assistindo ao jogo da linha do trem. No finzinho, eles abriam o portão e entrava aquele bando de gente. Depois, comecei a frequentar arquibancada. No final de 1997, foi a primeira vez que conversei com alguém da diretoria de modo que pudesse ajudar de alguma forma. Fui me aproximando e tive essa trajetória como diretor social, de futebol e presidente.
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Vê alguma ironia no fato do primeiro presidente negro do clube não ter sido eleito ( era o vice de José Abdalla, que renunciou em novembro)?
Num primeiro momento eu seria o ca ndidato. Declinei por razões pessoais e aceitei ser o primeiro vice. Mas não tenho a menor dúvida de que seria eleito se fosse o cabeça da chapa. Estávamos muito tranquilos em relação ao processo eleitoral. E nossa diretoria é bem plural do ponto de vista étnico, racial e de gênero.
Em eventos ligados ao futebol, já passou pela situação de não ser reconhecido e te perguntarem o que estava fazendo ali?
Todos os negros vão responder da mesma forma. Todos já enfrentaram situações de racismo mesmo enstando em posições de destaque. Já passei várias vezes como dirigente de futebol, como cidadão e nas atividade profissionais. As próprias pessoas que estão fazendo um trabalho de atendimento dizem “Poxa, não sabia que você era presidente”. E depois mostram orgulho: “Que legal, você é o único da nossa raça aqui”. Na cabeça média do brasileiro, não passa que um negro vai chegar a uma posição de comando.
Fonte: O Globo