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Maracanã 70 anos: o gosto de ser campeão na torcida visitante contra Flamengo e Botafogo




Por conta de uma final inédita, quatro amigos se dispuseram a fazer o trajeto entre Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, e o Rio de Janeiro em um Tempra. Era inverno de 1999, e eles foram avisados que o carro tinha tudo para quebrar no caminho. Até quebrou mesmo, mas a viagem não foi interrompida. Já em 2004, um micro-ônibus saiu de Santo André, no ABC paulista, rumo à Cidade Maravilhosa com cerca de 30 passageiros. Afinal, o time da cidade tinha o compromisso mais importante de sua história. Nenhum dos envolvidos se sentiria em casa.

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Embora em momentos distintos, os dois relatos reais convergem para um mesmo ambiente: o Maracanã. O estádio os aguardava pulsante, intenso, com anfitriões eufóricos diante da possibilidade de conquista da Copa do Brasil. Na bagagem, cada visitante levava a vontade de, ao menos, aplaudir o time do coração no último capítulo de uma campanha que já era histórica. E tanto em 1999 quanto em 2004, o desfecho foi épico para quem não estava acostumado a estar ali. Não por acaso a conquista do Juventude diante do Botafogo e a façanha do Santo André contra o Flamengo estão na lista dos 70 maiores jogos da história do Maracanã, em eleição feita pelo GLOBO.

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Enquanto os jogadores tinham seu merecido protagonismo, torcedores como o carteiro gaúcho Silvio Gasparini, então com 31 anos, e o publicitário paulista Mauricio Noznica, à época com 27, enfrentavam um ambiente diferente, até hostil, que deixou memórias inesquecíveis. Tudo valeu a pena diante do privilégio de gritar “é campeão” tão longe de casa.

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Em um requinte de crueldade, o Maracanã tem em seu DNA premiar quem o visita. Os uruguaios que o digam. Décadas após a inauguração, os torcedores de Juventude e Santo André tiveram um Maracanazo para chamar de seu. E dois deles contam ao GLOBO como foi.

O aperto

O perrengue de ocupar o pouco espaço disponível

Silvio Gasparini (camisa com listras horizontais), amigos torcedores do Juventude e botafoguenses na final da Copa do Brasil 1999 Foto: Silvio Gasparini /Arquivo Pessoal
Silvio Gasparini (camisa com listras horizontais), amigos torcedores do Juventude e botafoguenses na final da Copa do Brasil 1999 Foto: Silvio Gasparini /Arquivo Pessoal

Ser visitante no Maracanã pré-reforma era conviver com pouco espaço. Para quem conseguia ao menos um ingresso no setor reservado, como foi o caso de Silvio e seus amigos apaixonados pelo Juventude, a aflição foi ver a corda esticada pela Polícia Militar chegar cada vez mais perto. Foram 101.581 presentes. Depois daquela tarde/noite de 27 de junho, um domingo, o Maracanã jamais ficaria tão cheio.

– Eles cantavam “o Maraca é nosso”, e a gente ficava apreensivo – conta Silvio.

Havia não mais do que 2 mil torcedores do time gaúcho na ocasião. Muitos foram de avião, outros tantos foram de ônibus, mas a opção de carro pareceu mais atraente na conversa que os quatro amigos tiveram na quarta-feira anterior. O tempra quebrou no sábado, pouco antes de chegar a Curitiba, cerca de 550 km após a partida. A bomba injetora não aguentou. O trajeto, então, teve escala obrigatória em Volta Redonda antes de culminar no Rio, já no domingo da final. Deu para fazer turismo no Cristo Redentor, aparecer no hotel em que estava a delegação do Juventude, passear em Copacabana e almoçar na Tijuca, em frente à sede do América. O Tempra ficou estacionado na região próxima ao estádio e eles foram ao Maracanã a pé.

Apesar do pouco espaço que os aguardava na arquibancada, Silvio e a torcida do Juventude tiveram um ambiente até amistoso no entorno. Posaram para fotos na entrada do Bellini e, em minoria, circularam amigavelmente em meio à torcida alvinegra.

– Foram receptivos com a gente. Depois, virei até um pouco botafoguense também – relata o gaúcho.

No caso de Mauricio e a galera de Santo André, não foi bem assim. O trânsito do Rio naquela noite de quarta-feira estava em colapso. O engarrafamento aumentava a tensão de quem imaginava chegar tranquilamente no Maracanã, tomar seu assento e aguardar o desenrolar da partida. O pacote de passagem e ingresso custou R$ 50 por pessoa. Mauricio tinha a companhia do pai, Osvaldo. Ambos não imaginavam o quanto de recordações teriam daquela noite.

No micro-ônibus estavam membros da diretoria do Santo André, alguns torcedores conhecidos da cidade e até o massagista, que não teve espaço no veículo do time. As organizadas vieram em outra caravana e ocuparam setor diferente no Maracanã. O grupo de Mauricio precisava chegar na parte mais central da arquibancada, em cima das cabines de rádio e TV. Contando com outro ônibus, eram cerca de 100 pessoas, ao todo. Achar o portão 13 da época foi complicado. Após algumas voltas,  motorista e passageiros perceberam que o desembarque era necessário. Da janela, o cenário era intimidador: um mar de rubro-negros se aquecendo para a decisão.

– O clima não estava muito legal naquele dia. Tinha muita gente sem ingresso, rolavam os bondes pulando e faziam arrastão. Tiramos as camisas do Santo André e fomos. Demos de cara com policiais, disseram que não poderíamos entrar, mas o ingresso indicava que era por ali. Nos jogamos na muvuca e passamos. Estávamos no meio da torcida do Flamengo – conta Maurício.

Entorno do Maracanã antes de Flamengo x Santo André, em 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal
Entorno do Maracanã antes de Flamengo x Santo André, em 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal

Naquele ambiente que misturava festa e tensão, era complicado até conversar com o pai. O sotaque os denunciava:

– Falei com o meu pai que era histórico para nós e para eles também. Nisso, um cara já puxou o meu braço: “Tu é paulixta, cara?” Falei: “Sou, mas aqui é Mengão”.

Instantes depois da fuga estratégica, os torcedores do Santo André tiveram a verdadeira noção do ambiente que enfrentariam.

– Sou fanático por estádio pequeno. Mas quando eu saí do último lance de escada e olho o Maracanã… Era um caldeirão! Cheio de faixas, coisa que já não tinha mais em São Paulo. Não via bandeirão desde o fim dos anos 80. Vi a outra parte da nossa torcida lá embaixo. E aí começa a parte tensa.

Inicialmente, os visitantes imaginavam que, por estarem em um setor com ingresso mais caro, assistiriam e torceriam tranquilamente. Ledo engano. A pressão viria dos assentos ao lado e da multidão que estava do outro lado da barreira de acrílico. Ela foi tanta que eles cogitaram ir embora no meio do jogo. Mas decidiram ficar.

Tensão com a bola rolando

O tempo passa mais devagar ao longo dos 90 minutos

Final entre Flamengo e Santo André, pela Copa do Brasil 2004 Foto: Cezar Loureiro
Final entre Flamengo e Santo André, pela Copa do Brasil 2004 Foto: Cezar Loureiro

 

O Juventude de Maurílio, Lauro, Picoli e Cia. vencera o primeiro jogo por 2 a 1, em Caxias do Sul. O placar imediatamente gerou euforia na diretoria e mobilizou os torcedores.

–  Tomado pela emoção, fui para o microfone de uma rádio e disse: “Para quem quiser ir, o clube banca”. Minha diretoria quis me matar depois. Falei que daríamos um jeito. Até hoje encontro gente na rua que me agradece, dizendo que conheceu o Rio por causa do Juventude – conta o então presidente do clube, Milton Scola.

Silvio Gasparini e os três amigos não usaram essa verba, mas compartilharam o sofrimento com os outros. Os quase 100 mil botafoguenses dependiam de um gol para comemorar o título. A cada ataque do time da casa, a tensão crescia.

Silvio Gasparini (D) e os amigos no Maracanã na final da Copa do Brasil 1999 Foto: Arquivo pessoal
Silvio Gasparini (D) e os amigos no Maracanã na final da Copa do Brasil 1999 Foto: Arquivo pessoal

 

– Foram os 95 minutos mais demorados da minha vida. Nunca tive a certeza que seria campeão. Parecia que o gol do Botafogo iria acontecer a qualquer momento. A pressão foi muito grande. Levei um terço para o jogo, e ele nunca foi tão apertado – diz o torcedor.

A sensação de que o tempo passou mais devagar também foi a tônica da final disputada pelo Santo André. A diferença é que, enquanto os gaúchos ficaram engasgados até o apito final, a torcida paulista teve dois gols para comemorar.

A estratégia do time treinado por Péricles Chamusca, que não ficou no banco, era segurar o 0 a 0 para alimentar a soberba rubro-negra. Isso exigiu sangue frio no primeiro tempo. Mauricio trocou de assento durante o intervalo. Ficou entre um garoto que aparentava uns 10, 11 anos de idade e o pai. Rapidamente percebeu o motivo do espaço vazio. A cadeira estava molhada. Aos sete minutos da etapa final, a pulsação aumentou. Sandro Gaúcho, de cabeça, fez 1 a 0 para o Santo André.

– Sentia o sangue passando na veia. Olhava meu pai, e ele ria muito. A gente acha que dava para disfarçar, mas dava para ver nitidamente quem era Santo André. Foi tão forte e bonito… Percebi que já seria uma história que guardaria para vida inteira – diz Mauricio.

Maracanã no Flamengo x Santo André, final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal
Maracanã no Flamengo x Santo André, final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal

Mal sabia ele que uma carga emocional ainda maior estava a caminho:

– Quando o Elvis fez o segundo gol (aos 23 minutos), eu comecei a chorar. O menino do meu lado, coitado, imaginando que eu era flamenguista, ainda falou para mim: “Não fica assim não que o Flamengo é muito maior que esse time de terceira divisão”. Demorou alguns minutos até a ficha cair no Maracanã. Em um momento, levantei a cabeça e vi que tinha uns buracos, gente indo embora.

O clima ficou tenso, teve conflito entre rubro-negros e policiais, mas quem estava lá em nome do Santo André contava os minutos para festejar ainda mais.

Comemoração com água e invasão

A reação diante do título improvável reserva surpresas

Mauricio, em primeiro plano, com o pai, jogadores do Santo André e amigos na final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal
Mauricio, em primeiro plano, com o pai, jogadores do Santo André e amigos na final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal

 

Silvio mora em Flores da Cunha, cidade vizinha a Caxias do Sul. Em uma cidade com ar de interior, tinha proximidade com a diretoria e alguns jogadores. Por isso ver o Juventude campeão no Maracanã, mesmo sem ter visto um gol, já que a partida acabou 0 a 0, foi tão marcante.

– É o maior título da história do Juventude. Foi uma experiência ímpar. Jamais vai sair da memória. Foi como se tivesse tatuado na cabeça. Jamais vou esquecer a tarde sagrada de 27 de junho de 1999. Não tem como tirar mais – relata ele, que não precisou de “impulso” a mais para festejar:

– Não estava bebendo na época. Fui campeão no Maracanã e só tomei água mineral.

Mauricio Noznica, além de testemunhar a zebra com a vitória do Santo André sobre o Flamengo, ainda desbravou cantos do Maracanã que nem imaginava alcançar.

Era cena recorrente: a cada jogo de título, uma invasão no gramado. Em 2004, não foi diferente. Os membros da diretoria da equipe paulista que estavam no mesmo setor que Mauricio e o pai deram “carteirada” e conseguiram acesso ao campo via vestiário. Era preciso improvisar. Os dois contaram com a dica de um segurança. Foi passar por uma porta, subir a escada e aguardar o momento de extravasar.

– Torcedor do Santo André nem sabia como comemorar um negócio desse tamanho. Saímos correndo, cada um para um lado. Até hoje lembro: um amigo meu, que morreu no ano seguinte, foi se pendurar na trave. O time começou a volta olímpica, a CBF montando o palco. Ninguém queria sair dali. Nunca tinha entrado. E quase caí no fosso. Invadi entrevista do Romerito na rádio. Foi uma mistura de sentimentos incríveis. Eu me senti no topo do mundo, torcendo pelo time da minha cidade – relata Mauricio Noznica, que ainda entrou no vestiário e até tirou foto com Chamusca.

Torcedor Mauricio Noznica com amigos e o pai após a final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal
Torcedor Mauricio Noznica com amigos e o pai após a final da Copa do Brasil 2004 Foto: Mauricio Noznica/Arquivo pessoal

Hoje com 42 anos, o publicitário coleciona memórias e relíquias do futebol, como camisas, e, em especial, daquela noite no Maracanã. Ele fala com orgulho do pai, que colocou a mão na taça durante a volta olímpica, e levou para casa um tufo de grama. Virou peça de ornamentação, já que o torcedor colocou uma porção já seca daquele tapete colada junto ao pôster do Santo André campeão que tem na parede de casa. Outro item do “museu” pessoal é o papel picado que voou quando o time levantou a taça.

– Nunca mais fomos os mesmos. Temos uma estrela na camisa. No dia seguinte, além de dormir o dia inteiro, escrevi como se fosse um diário. Às vezes leio para lembar. Nenhum torcedor do Santo André ou diretor acreditaria que o time iria tão longe – finaliza Mauricio, sobre a inesquecível jornada como visitante.

Fonte: O Globo


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