Enquanto a política tradicional enfrenta dificuldades na busca por consenso entre opositores do governo de Jair Bolsonaro, um movimento organizado por torcidas de futebol uniu apoiadores de clubes rivais em manifestações a favor da democracia no último domingo. Esses grupos, autodenominados antifascistas, retomam uma trajetória de participação política que remonta ao período da ditadura militar.
Pesquisador: “Torcidas antifascistas ocupam ‘vácuo’ de partidos políticos nas ruas”
Hoje comumente associadas a episódios de violência dentro e fora dos estádios, as organizadas surgiram, entre o fim dos anos 1960 e a década seguinte, como movimentos intrinsecamente políticos ? diferenciando-se dos grupos uniformizados fundados nos anos 1940, essencialmente festeiros.
Esse novo perfil de torcedor queria levar a voz das arquibancadas para os bastidores dos clubes, até então comandados por cartolas pouco transparentes. Um desses dirigentes foi Wadih Helu, presidente do Corinthians entre 1961 e 1971, e uma das razões para a criação da Gaviões da Fiel, organizada que mais vezes misturou futebol e política.
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O Timão voltaria a cruzar essa fronteira em 1979, em um clássico contra o Santos, no Pacaembu, quando os jornalistas Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões, e Antônio Carlos Fon abriram uma bandeira com os dizeres “anistia ampla, geral e irrestrita? na arquibancada. E mais uma vez no início da década seguinte, quando Sócrates e cia encabeçaram a Democracia Corinthiana. Esse movimento, em sintonia com a torcida, revolucionou o modo de gerir um clube ao garantir que os votos de todos os funcionários tivessem o mesmo peso em decisões-chave.
A relação entre arquibancada e a redemocratização se estendeu para o Rio de Janeiro, palco do Fla-Flu das Diretas, em 1984, quando rubro-negros estamparam na arquibancada que “O Fla não Malufa?, um protesto a Paulo Maluf, rival de Tancredo Neves (PMDB) na eleição indireta para a presidência e membro do PDS, legenda que sucedeu o antigo Arena, partido do regime militar.
Outra perspectiva
A história das torcidas organizadas ? e a percepção sobre elas na sociedade ? mudaria pouco mais de uma década depois, como aponta Flávio de Campos, professor do curso de pós-graduação em História Sociocultural do Futebol na USP, ao relembrar a “Batalha do Pacaembu?, em 20 de agosto de 1995. Naquele dia, torcedores de Palmeiras e São Paulo que acompanhavam a final da Copa São Paulo de Juniores protagonizaram uma das cenas mais tristes do futebol brasileiro, que resultou na morte de uma pessoa e em 101 feridos.
?Esse é um evento muito simbólico. Ali, a negligência do poder público e a falta de organização permitiram um confronto generalizado, que se tornou marca da violência nas organizadas. Esse processo, que permanece até hoje, é fruto da falta de diálogo com as torcidas e de um olhar sempre muito repressor ? aponta Campos.
Coletivos, a alternativa
Na última década, porém, um novo perfil de torcida organizada reaproximou o futebol de debates para além das quatro linhas. São os coletivos, grupos que possuem um posicionamento político definido (como os antifascistas que participaram das manifestações de domingo) e/ou se associaram em defesa de pautas identitárias, como as lutas contra o racismo, o machismo e a homofobia. Também advogam contra a elitização dos estádios e por ingressos mais acessíveis.
? Esses grupos se articulam entre si e vão continuar pautando o debate sobre futebol ? aposta Vitor Gomes, mestre em Sociologia pela Universidade de Goiás e autor da tese “A militância político-torcedora no campo futebolístico brasileiro?.
Todos os 12 principais clubes do país possuem coletivos que se identificam com essas pautas. Nenhum deles assume para si a organização dos atos do último fim de semana, que são tratados como iniciativas “supratorcidas?, mas admitem a afinidade de posicionamento e a interseção entre parte de seus membros e os grupos que foram às ruas.
? Nessas manifestações, as torcidas mostram que é possível superar rivalidades clubistas, que são fortíssimas, em nome da democracia ? destaca Campos.
Fonte: O Globo