RIO – Virou rotina. A cada domingo, um grupo de manifestantes se aglomera em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília. Entre as demandas, pedidos pela volta do AI-5,  fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Foi num destes eventos que, no último dia 3, profissionais da imprensa foram agredidos com chutes e murros. Além de compartilharem a mesma postura, os apoiadores de pautas polêmicas, que têm adeptos em outras manifestações pelo país, também mostram unidade visual. Vistos de longe, formam uma mancha amarela. É a cor da camisa da seleção brasileira, adotada como um uniforme por estes movimentos em alusão ao patriotismo. O fato de ver um símbolo do futebol nacional em atos inconstitucionais, porém, gera incômodo apenas silencioso em atletas do passado e do presente que representam ou representaram o país com a vestimenta.

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Não é de hoje que ela dita moda entre manifestantes. Mas, com o futebol parado devido à pandemia da Covid-19, a camisa deixou de ser acompanhada dos gritos de gol e passou a dividir a cena com pedidos de intervenção militar.

A CBF não vê com bons olhos qualquer tentativa de se politizar a seleção. Seja para o lado que for. O GLOBO apurou que a entidade preferiria que a atual apropriação da amarelinha por movimentos políticos fosse evitada. Porém, ela não se manifesta sobre isso publicamente e se vê de mãos atadas quanto ao que fazer. Procurada oficialmente, disse por meio de sua assessoria que não fala sobre o assunto.

A insatisfação não é uma tomada de posição. Analisando o papel da CBF e suas relações, parece claro que a entidade busca diálogo com todos os lados do espectro político, algo vital para suas metas e objetivos, e se associar a um deles, ainda que de forma não voluntária, pode ser prejudicial para sua imagem.

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Em 2019 o marketing da CBF até lançou uma camisa branca com a qual seleção estreou na Copa América do Brasil. Mais que uma posição ou um sinal de paz, o novo uniforme deu mais o recado de homenagem aos 100 anos do Sul-Americano de 1919 do que tentativa de retirar o peso político da amarelinha. Nunca se falou sobre a apropriação da camisa nos protestos políticos e, obviamente, jamais pensou-se em trocar definitivamente a cor do tradicional uniforme por causa disso.

– Temos orgulho de toda a nossa trajetória. A seleção brasileira é a maior de todos os tempos, com maior número de taças, vitórias e gols marcados na Copa do Mundo. Nossa camisa tornou-se símbolo de alegria, talento e liberdade – disse o presidente Rogério Caboclo na ocasião do lançamento da camisa branca, deixando impossível inferir que a peça possa ter sido uma reação subliminar e publicitária à ressignificação do uniforme titular.

Entre os atletas atuais, fuga do debate

Dirigentes, porém, não vestem a camisa no sentido literal, mas a situação não muda muito de figura em relação aos atletas. O GLOBO procurou jogadores do presente e do passado que ajudaram a construir a história da camisa. O intuito era saber como eles viam este símbolo nacional ser apropriado pelo radicalismo. Apenas dois, ambos do passado, se pronunciaram. O resultado mostra que, nem mesmo com a democracia em jogo, política deixa de ser tabu no futebol.

A tentativa de obter um posicionamento, seja de crítica ou elogio à apropriação, ou até mesmo neutra, foi infrutífera em relação aos jogadores que atuaram no último jogo da seleção principal (o amistoso contra a Coreia do Sul, em novembro). Houve contato com quase todas as assessorias de imprensa dos atletas que entraram em campo (10 de 14 jogadores), incluindo astros do futebol mundial como Gabriel Jesus, Roberto Firmino e o goleiro Alisson. Em alguns casos, a resposta foi a de que eles não iriam emitir uma opinião sobre o assunto. Em outras, no entanto, os assessores sequer levaram a demanda para seus clientes.

Com a experiência de quatro Copas pelo Brasil (como preparador físico, como treinador e como coordenador técnico), Carlos Alberto Parreira afirma que política nunca costumou ser assunto nos bastidores da seleção. Mais recentemente, com as recomendações de uso de redes sociais durante as competições, ficou ainda mais claro que ali não era lugar para o tema.

– O que acontecia lá dentro não era para falarem. E assuntos polêmicos, como manifestações políticas e religião, não eram proibidos. Mas deveriam ser evitados – observa.

Cabe lembrar, porém, que religião e seleção sempre tiveram relação íntima, seja em comemorações e agradecimentos ou em grupos de reza permitidos durante concentrações. A política é bem mais rara. E parece ser algo que não é desta década marcada por crises em Brasília.

A reportagem procurou nomes conhecidos por marcarem posição em relação à política. Entre eles, Reinaldo, que na Copa de 1978 comemorou um gol com seu tradicional gesto do punho cerrado; Walter Casagrande, um dos líderes da Democracia Corinthiana; e Felipe Melo, que não esconde sua admiração pelo presidente Jair Bolsonaro. Em nenhum dos casos houve um retorno positivo.

A resposta mais contundente veio de Tostão. Protagonista na conquista da Copa de 1970, ele classifica a apropriação da camisa da seleção por estes movimentos como “lamentável”. Mas não se mostra interessado em ir além do adjetivo.

– Eles escolheram a camisa por ser um símbolo nacional. Não tenho muito o que dizer em relação a isso.

Presente em três Mundiais (1978, 1982 e 1986) Zico dedicou mais palavras ao assunto.

– Vivemos numa democracia e todos têm o direito de se manifestar como quiser. E não importa como estejam vestidos, principalmente quando compram a roupa com o dinheiro deles. Agora, se estão infringindo a lei ou cometendo atos de agressão, cabe às autoridades policiais protegerem os cidadãos e punirem os agressores, independentemente de como estejam vestidos.

Entre o marketing e o medo

Não se comprometer com nenhum lado é praticamente um lema do futebol. Trata-se de um meio que estimula o jogador a ser apolítico. Principalmente no universo da seleção.

Durante a Copa das Confederações de 2013, entretanto, a política fez força para entrar na concentração. Era o auge das manifestações de junho daquele ano. Foi preciso uma reunião entre comissão técnica e atletas.

– Os jogadores queriam saber como se manifestar. E alguém sugeriu virar as costas para a bandeira no momento do hino. Mas eles ficaram na dúvida. Aí decidimos fazer essa reunião. O Felipão alertou: “Cada um fala e faz o que quiser. Mas vai ser responsável pelas consequências. Não se envolve seleção com política, é esporte” – lembra Parreira, explicando que a preocupação maior do treinador era de que um gesto político pudesse colocar parte da torcida contra a equipe.

– Cada um expôs sua opinião e se resolveu de uma maneira clara e sensata. Não houve extrapolação nenhuma.

A recomendação para evitar assuntos polêmicos não vem apenas da CBF. Também é como pensam as marcas que investem milhões em contratos com clubes e com os próprios jogadores. Muitos acordos deixam explícito que o atleta deve evitar temas nos quais é grande a chance de ele se envolver em polêmica.

– Alguns assuntos geram grande preocupação nas empresas. E política é um deles. Geralmente os contratos vêm com cláusulas do tipo “disso você não fala” – conta Fábio Wolff, sócio-diretor da Wolff Sports, que faz a intermediação de contratos publicitários no mercado esportivo. – Naquele momento em que o profissional é contratado ele passa a ser embaixador da marca. E uma frase mal colocada cola na imagem da empresa.

Um exemplo disso ocorreu em junho de 2010, quando o hoje meia do Fluminense Paulo Henrique Ganso afirmou, em entrevista ao “Estado de São Paulo”, que “graças a Deus” não havia gays no Santos”. A revolta do público chegou à farmacêutica Medley, patrocinadora do clube paulista.

– Você não faz ideia do que a empresa recebeu de e-mails dizendo “Não vou mais comprar o produto de vocês”. E isso porque ela patrocinava à equipe, não o atleta – complementa Wolff. – Por situações como essas que, hoje, muitas empresas colocam profissionais de comunicação para treinar seus garotos-propaganda como se sair em entrevistas.