Em conversas, jogadores da Premier League se mostram impressionados com “Arremesso final”, minissérie-documentário da ESPN/Netflix sobre a carreira de Michael Jordan. Mas um elemento se destaca: a personalidade do astro do Chicago Bulls é algo que eles admiram, mas não reconhecem.
Nenhum deles conviveu com um nível tão feroz de competitividade. Até Ian Wright diz que “Jordan é o indivíduo mais determinado” que ele já viu. E essa declaração vem de um ex-jogador dos anos 1980, quando instrumentos motivadores se pareciam mais com bullying do que com um encorajamento.
A maioria argumenta que o exemplo mais próximo de Jordan é Roy Keane, que passou boa parte da última década dizendo que o futebol moderno era “muito suave” e jogado por “seres humanos muito fracos”. “Você não pode falar nada para eles (jogadores)”, afirmou.
Imagine como os jogadores reagiriam ao serem chamados de “lixo”, como Jordan fez com Scott Burrell; ou como lidariam com um soco, tal qual levou Steve Kerr; ou apenas como se sentiriam ao ouvir o seguinte mantra.
“Minha mentalidade é a de vencer a qualquer custo”, diz Jordan em certo momento do documentário: “Se você não compartilha dessa mentalidade, você não quer estar ao meu lado, porque eu vou te ridicularizar até que esteja no mesmo nível que eu. E se você não chegar ao mesmo nível, será um inferno pra você”.
Eles provavelmente não reagiriam bem. Um técnico da Premier League diz que “se você falar com eles (jogadores de hoje) como fazíamos na minha época, eles começariam a chorar”.
Keane tem razão quando diz que o futebol amoleceu, mas apenas na medida em que os treinamentos se tornaram mais inclusivos e progressivos. Ou seja, mentalmente mais saudáveis. É irritante pensar na quantidade de jogadores talentosos que foram perdidos porque o estilo de treinamento não combinava com suas personalidades.
Talvez a pior mensagem da carreira de Jordan ? explícita no sétimo episódio ? seja a de que o bullying é indispensável para o sucesso. Seria uma coisa terrível se os jovens técnicos se influenciassem por essa parte da série.
Ao mesmo tempo, no esporte competitivo, a diferença se dá nos detalhes, no limite do desempenho. Atletas profissionais precisam ser cobrados. É por isso que alguns paralelos com a carreira de Jordan persistem.
As batalhas físicas com o Detroit Pistons, que quase se tornaram duelos filosóficos, foram espelhadas pelo Barcelona de Pep Guardiola e pelo Real Madrid de José Mourinho; o tratamento dado ao futuro contratado Toni KuKoc lembra os comentários pejorativos sobre Antoine Griezmann antes de ele assinar com os catalães; já o papel de Scotty Pippen, a subserviência de um grande jogador a uma estrela maior, era basicamente a relação entre Karim Benzema e Cristiano Ronaldo.
Você pode perceber uma tendência aqui, mas também pode notar que esses paralelos vêm de lugares diferentes. No futebol, nenhum jogador pode ser tão dominador quanto Jordan.
E poucos conseguem ser como ele o tempo inteiro. Esse é um ponto-chave, que inevitavelmente nos leva outra vez aos dois principais jogadores da era moderna: Lionel Messi e Cristiano Ronaldo. Para ser tão implacável com os outros, você precisa ser realmente bom.
“Muitas pessoas tentam ser esse tipo de influência nos vestiários, mas isso só se sustenta quando o nível delas próprias é incrível, porque isso tira do outro a capacidade de argumentar de volta. Imagine qualquer jogador tentando discutir com Messi. Não vai rolar”, diz um ex-funcionário do Barcelona ao “Independent”.
Há uma história recente de um capitão que, na medida em que ia envelhecendo e se tornando fisicamente mais debilitado, tornava-se mais opressor. Não houve efeito algum. Os jogadores mais jovens se aproximavam de outro companheiro experiente ? e mais benevolente ?, que se tornava o verdadeiro líder.
Não é que os jogadores modernos não aguentem esse comportamento. Eles apenas não o admitem.
“Jordan seria expulso de um vestiário de futebol”, argumenta uma fonte. É por isso que os exemplos de Cristiano Ronaldo e Messi são instrutivos. O português se parece superficialmente mais parecido com Jordan: ele pode ser “insuportável” no vestiário, pode “irritar treinadores” ? ele nunca morreu de amores por Zinedine Zidane; e pode ser obcecado por vitórias. Mas é esse o ponto: é apenas superficial.
Cristiano Ronaldo não é um macho-alfa dominante da mesma maneira, ninguém tem medo dele, como muitos tinham de Jordan. E ele geralmente está muito focado em si mesmo. Fontes do Real Madrid dizem que o português treinava com excepcional dedicação, mas que deixava de prestar atenção quando se discutiam aspectos táticos.
CR7 fica feliz desde que seja o centro das atenções. Por isso, não “suga” tanto quanto Jordan ou Keane.
A percepção dos que atuam com ele na seleção portuguesa é ainda mais complicada. Isso se dá, em parte, porque as pessoas às vezes subestimam o quão patriota ele é, e o quão desesperado fica para ganhar algo por seu país.
Ronaldo pode ser mais exigente lá, mas ainda assim não há o fator medo. Em vez disso, ele é visto como “uma espécie de deus”, que também assume uma função mais paternal.
Ele desfruta da companhia dos seus compatriotas e gosta de falar a própria língua. Essa diferença talvez possa ser observada nos momentos que antecederam a disputa de pênaltis contra a Polônia na Eurocopa de 2016. Ronaldo vira para João Moutinho e diz: “Bata firme. Se perdermos, foda-se. Bata com força”.
Contraste esse episódio com o momento decisivo das finais da NBA de 1997, contra o Utah Jazz. Jordan, escondendo a sua boca das câmeras, quase conspiratoriamente diz para Kerr “estar pronto”. Isso leva a uma reação exageradamente cômica de Kerr, mas é esse o ponto. Era uma instrução dura que ele não queria descumprir. Com Ronaldo e em um momento similar, houve encorajamento.
Messi é previsivelmente descrito como muito mais quieto, mas esse também é um ponto. Ele pode “matar com um olhar”. É um olhar que instantaneamente incorpora os seus altos padrões e a expectativa de que todos o alcancem.
David Villa, Alexis Sánchez, Griezmann e muitos outros já sentiram isso. Alguns se adaptaram, outros não. Um ex-companheiro de time admite que o comportamento do argentino pode ser “muito exaustivo”.
Mas ele é expresso apenas sutilmente. Não há a imposição do medo, apenas uma espécie de medo de reprovação. É bem mais sútil do que Jordan repetidamente dizendo a Burrell para “parar de dar desculpas”.
Messi pode até falar alto, mas isso geralmente ocorre apenas em grandes momentos para o clube, e costuma ir além do vestiário, como foi visto nos últimos meses.
Porém, não se parece com Jordan. Pouca coisa no futebol moderno se parece.
Fonte: O Globo