Há diversas maneiras de consumir futebol. Todas legítimas. Há quem o veja apenas sob a ótica de um clube, do seu clube. Há quem se sinta atraído pelas grandes ocasiões, as finais ou os jogos entre seleções. No meu caso, trata-se de um amor que foi se transformando ao longo do tempo e culminou num exercício de separar dois olhares distintos na direção do campo: o jornalista procura informação, tenta contar da melhor forma as histórias, busca identificar as intenções dos treinadores e avaliar quem as executou melhor numa partida; já o amante do jogo, em busca de prazer genuíno, tornou-se um obsessivo seguidor de uma maneira específica de jogar. Respeitados os limites que a profissão impõe, transformou-se num torcedor daqueles que, ao fazerem seus times se expressarem, parecem sentir o jogo de uma forma semelhante.
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É inesquecível o momento em que ocorre tal revelação, em que uma atuação de uma equipe convence você, de forma definitiva, de que aquilo é exatamente o que busca num jogo de futebol. É quando, no lugar de escolher um lado, você é escolhido. Mesmo que antes de ver aquele time se exibir você jamais tenha feito uma lista de características que gostaria de encontrar numa equipe, mas ao deparar com uma forma de jogar acaba por se sentir preenchido. É óbvio que naquele 28 de maio de 2011 eu já sabia, havia alguns meses, como jogava o Barcelona de Guardiola. E já me apaixonara pela forma de interpretar, de sentir o futebol que aquele time traduzia. O futebol como forma de expressão da genialidade e ousadia de um visionário. Mas há jogos que são como uma confirmação, ou mesmo o definitivo sinal distintivo de um time. O ponto mais sublime, capaz de delimitar que tamanho aquela equipe terá na história.
Cobrindo o jogo pela TV na redação do GLOBO, terminei aquele Barcelona 3, Manchester United 1, que decidiu a Liga dos Campeões, convencido de que aquilo era o que buscava num jogo de futebol. A bola como instrumento inegociável de controle, a posse como ferramenta, o passe como elemento que une o time desde a defesa, ocupação de espaços preferencialmente no campo contrário, disposição a atacar o espaço curto contra um rival submetido a sua estratégia e pressionado, ousadia para defender espaços grandes às costas de sua defesa, ofensividade, generosidade com o espetáculo.
Quase todo mundo já conhecia os princípios daquele time de Guardiola, mas era impossível saber a que nível a equipe poderia chegar. E é notável que tenha feito uma de suas maiores exibições naquele jogo em Wembley. Não é simples jogar o seu melhor, exibir tamanha excelência na ocasião de maior pressão e maior exigência. Era uma final de Liga dos Campeões e do outro lado estava o Manchester United de Alex Ferguson, campeão de quatro das cinco edições mais recentes da Premier League, campeão europeu três anos antes. E aquele time só conseguiu ficar com a bola 37% do tempo, só finalizou quatro vezes contra 22 do Barcelona. E só acertou o gol uma única vez, enquanto os catalães foram 12 vezes ao alvo.
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Foi um daqueles jogos que mudam paradigmas e abem novas discussões. Ao final, já não se discutia se o campeão inglês ou os principais times da Europa eram piores do que o Barcelona de Guardiola. Discutia-se o quanto era surreal parecerem times de classe inferior. Após aquela partida, era risível debater se aquele Barcelona era a melhor equipe do mundo. O debate era se ali estava o maior time da história.
Wembley viu um futebol que em dados momentos parecia balé, em outros uma roda de bobo e, em muitas passagens da decisão, uma covardia. Em seu 4-4-2, Ferguson optou por Carrick e Giggs como volantes à frente da defesa. Javier Hernández era o atacante mais avançado e Rooney jogava por trás. Pelos lados, estavam Valencia e o coreano Park na linha de meias. Isso teve consequências sérias.
A esta altura, Messi estava definitivamente estabelecido como o “falso 9”. Saía da linha de ataque por várias finalidades: atrair marcadores para abrir espaço onde Pedro e Villa poderiam infiltrar ou criar superioridade numérica em algum setor. Aconteceram as duas coisas. Ele se juntava a Busquets – que Rooney não conseguiu combater -, Xavi e Iniesta e criava-se uma ciranda que enlouquecia Carrick e Giggs.
No primeiro gol, a bola está com Xavi enquanto Messi se move e o lateral Evra o segue. Às suas costas, Pedro marca. No segundo, antes de Messi arrancar para o chute, fica claro que ele, Xavi e Iniesta fazem um três contra dois diante de atônitos Carrick e Park, este último movido para o centro numa tentativa de Ferguson de equilibrar as coisas. O terceiro, de Villa, culmina uma troca de passes curtos seguida de dribles desequilibrantes de Messi. A ocupação racional dos espaços fazia parecer que sempre havia um homem livre do Barcelona. A excelência técnica tornava precisa a execução das ideias saídas da mente de Guardiola. Era o Jogo de Posição em sua versão mais sublime.
Não é fácil estabelecer um padrão de exigência tão alto. Mas, desde então, sempre que me vejo diante de um jogo em que uma das equipes apresenta ideias similares, com ousadia, ofensividade, domínio através da bola e disposição ao protagonismo, sei para que lado vou pender.
Fonte: O Globo