Quando Roberto Baggio saiu do meio do campo para bater a quinta e última cobrança da Itália na decisão por pênaltis contra o Brasil na da Copa do Mundo de 1994 ? a TV Globo reprisa toda a final neste domingo, às 16h ? mal sabia que, além da pressão e de Taffarel, teria que enfrentar a estatística. Um estudo de 2014 do economista Chris Anderson (autor do livro “Os números do jogo: por que tudo que você sabe sobre futebol está errado) apontou que, numa disputa de penalidades, a chance do cobrador acertar é de 68,9%. Porém, quando o jogador se vê na situação de que se errar a cobrança seu time é eliminado ou perde o título ? caso do italiano nos EUA ? o índice de acerto cai vertiginosamente: só 14,2%. O impressionante dado matemático é só umas das tentativas de explicar o porquê do melhor jogador do mundo na época errar o chute mais importante de sua vida no icônico lance que deu o tetracampeonato mundial para o Brasil.
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A explicação estatística
A reportagem tentou comprovar a tese do economista, e analisou todas as 30 disputas de pênalti da história das Copas do Mundo, de 1982 até 2018. O índice geral de acertos é parecido ? cerca de 70% . Apesar de não tão espantoso quanto nos dados coletados por Anderson, a histórias das Copas mostra que de fato bater uma penalidade que vale a sobrevivência de sua seleção é tarefa complicada. Nesta situação, só 42% dos batedores conseguiram fazer o gol, com Baggio pertencente à maioria que errou. Ainda que o italiano superasse a estatística e marcasse o gol, o tetra dificilmente mudaria de mão. Bastava Bebeto, o quinto cobrador programado do Brasil, acertar a cobrança que nunca aconteceu. Os dados coletados em jogos de Mundiais mostram que nas 19 vezes que um jogador precisou bater um pênalti para classificar ou dar um título a seu time, 18 vezes a bola entrou no gol antes da celebração. A grosso modo, o atacante brasileiro teria 95% de chances de vencer Pagliuca, o goleiro da Itália. A explicação é científica:
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? Quando o jogador acumula um nível muito alto de energia de ativação, ou seja, o aumento da ansiedade, tende a acontecer uma queda da concentração e um prejuízo nas ações neuromotoras. Portanto, quando você está sob um forte impacto emocional, existe uma tendência da gente não reproduzir movimentos que a gente treinou em condições normais. Esses desvios podem ser cruciais em momentos decisivos para o acerto e para o erro ? explica João Ricardo Cozac, psicólogo do esporte. O fato daquele ser a primeira final de Copa a terminar nos pênaltis na história pode, portanto, ter ajudado aquela bola a subir.
A explicação física
Roberto Baggio, curiosamente, viveu esse momento em três Copas diferentes em fases distintas. Em 1998, nas quartas de final, bateu a primeira penalidade na decisão contra a França e acertou. Mas viu o volante Di Biagio desperdiçar a quinta cobrança e dar a classificação para os franceses. Oito anos antes, em sua primeira Copa, em casa, o jovem meia acertou o segundo chute na semifinal contra a Argentina, mas viu Goycochea defender a cobrança do atacante Serena, levando o time de Maradona à decisão. Entre os dois torneios, seu calvário foi na finalíssima contra o Brasil em 1994, na pior batida de pênalti da história das Copas, se considerada apenas a distância que a bola passou por cima do gol.
Apesar dos colegas terem perdido seus pênaltis em temperaturas mais amenas, o calor e o cansaço podem ter contribuído no caso do camisa 10 contra o Brasil. O confronto foi disputada perto do meio-dia para agradar redes de televisões europeias, no auge do verão californiano (a temperatura chegou próxima a 40ºC), a decisão teve 120 minutos de bola rolando antes das penalidades. Com muitos jogadores, incluindo Baggio, em final de temporada, cada seleção já tinha jogado seis jogos no último mês.
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Tal cenário pode ter contribuído para quatro das nove penalidades terem sido desperdiçadas naquela tarde pelas duas equipes, bem como pelo fato de que o jogo tenha sido um chato 0 a 0, com chances claras de gol apenas na prorrogação, quando os times já se arrastavam em campo. E o craque italiano ainda tinha quebrado um dente e sofrido uma distensão na coxa na semifinal contra a Bulgária, tendo apenas 50% de condições de jogo segundo o médico italiano daquela equipe.
? O alto nível de desidratação causada pelo calor e esforço sobrecarrega o organismo e diminui o desempenho físico, técnico e inclusive cognitivo e nível de concentração. Isso numa disputa de pênaltis é algo determinante ? analisa o preparado físico Felipe Olive.
Nem falta de experiência, nem medo de Taffarel
Se já sabemos que a estatística e o cansaço ajudam a explicar o erro, por certo que a experiência de Baggio ou o temor por um goleiro pegador de pênalti não são argumentos plausíveis. Jogador com rara categoria na Europa do começo dos anos 90, o italiano era um exímio cobrador de pênaltis: no dia da final, Baggio tinha 60 pênaltis convertidos em 66 batidos na carreira: 90% de um aproveitamento que manteve mesmo após o lance que marcou sua carreira. Em 21 anos de carreira, bateu 164 pênaltis, convertendo 145 e falhando em apenas 19. Só em disputas de penalidades, bateu cinco vezes e acertou quatro. Com a camisa da Itália, ao todo, foram oito pênaltis batidos e sete gols. O único erro, nos dois casos, é o que ilustra esta reportagem.
“Eu não quero me gabar, mas só errei alguns (pênaltis) na minha carreira. E eles foram porque o goleiro pegou, não porque eu errei o alvo. Só para que você entenda que não há explicação fácil para o que aconteceu em Pasadena. Quando eu fui para a marca da cal, eu estava bem lúcido, o máximo que alguém poderia estar nessa situação”, escreveu Roberto Baggio em sua biografia.
Se Taffarel, goleiro do Brasil aquele dia, virou ídolo defendendo penalidades representando o país, não se pode dizer que colocava medo em Roberto Baggio naquela tarde. A fama de pegador de pênaltis, apesar do ótimo desempenho fora da seleção adulta nas Olimpíadas de Seul em 1988, só começou internacionalmente ali: a primeira cobrança defendida representando a seleção adulta em disputa de penalidades tinha acontecido minutos antes, quando o goleiro pegou o chute de Massaro.
Taffarel estava há três anos no futebol italiano, onde tinha defendido sete cobranças em 19 oportunidades. O índice de 37% é bom, mas não o suficiente para colocar um experiente cobrador em pânico. Foi depois daquele jogo que o gaúcho virou especialista em pegar os chutes fatais com a amarelinha: terminou a carreira com sete pênaltis que não viraram gol em 15 cobrados, com defesas em jogos importantes como na final do Mundial, na Copa América de 1995 contra a Argentina e duas defesas contra a Holanda na semifinal da Copa de 1998.
“Eu sabia que Taffarel sempre pulava para um canto, então tentei chutar no meio, a meia altura, para ele não poder pegar com os pés. Foi uma decisão inteligente porque Taffarel foi para a esquerda e nunca teria defendido o chute do jeito que eu havia planejado. Infelizmente, e eu não sei como, a bola subiu uns três metros e foi por cima do travessão”, escreveu o italiano no livro lançado em 2019.
Explicações de outro mundo
Se até aqui usamos dados, ciência e o desempenho esportivo para entender as razões para Baggio ter errado aquela cobrança, há quem acredite em explicações mais sobrenaturais. Muitos torcedores, por certo, recorreram à superstição para aquela bola não entrar e guardam até hoje a certeza de sua parcela de responsabilidade no título. O próprio Baggio, que é budista e muito religioso, tem sua explicação sobrenatural:
? Acho que foi o (Ayrton) Senna que puxou aquela bola para o alto. Acredito que foi ele que fez o Brasil vencer ? declarou em tom de brincadeira à TV Globo em 2010. O piloto brasileiro tinha morrido meses antes, em uma corrida na Itália, e os jogadores brasileiros comemoraram o título com uma faixa em sua homenagem. Uma cena inesquecível para os brasileiros, ao mesmo tempo em que o italiano vivia os primeiros minutos de um lance que o assombraria para sempre.
? Aquele pênalti está preso em mim. E assim vai ficar pelo resto da minha vida. Quando eu era pequeno, sonhava em conquistar uma Copa do Mundo com a Itália, contra o Brasil. Era o sonho perfeito, meu sonho favorito. Só que eu não sabia como esse sonho terminava. Acabou da pior maneira possível. É meu maior arrependimento, minha maior amargura. Está marcado em mim para o resto da vida ? disse o italiano em 2016.
Fonte: O Globo