A quarentena ou o isolamento social impostos em diversos países para evitar a propagação do novo coronavírus estão afetando os hábitos das pessoas – e nosso padrão de sono.
O neurologista Hernando Pérez, especialista do Centro de Neurologia Avançada da Espanha, explica à BBC News Mundo que o sono tem dois reguladores:
Pérez, que, como seus colegas, cuida de seus pacientes através de videochamadas, observou “uma recuperação da insônia em pacientes que já estavam sendo tratados”.
A mesma situação foi vista por Celia García-Malo, neurologista do Instituto Espanhol do Sono, que também detectou um número maior de distúrbios do sono. A instituição em que ela atua criou um serviço de consulta por telefone ou vídeo.
“Nas últimas duas semanas, fizemos mais consultas motivadas por problemas de insônia”, diz ela à BBC Mundo.
Ir mais tarde para a cama
Ambos os especialistas estão tratando os pacientes pelo que é conhecido como “atraso de fase”, que ocorre quando uma mudança em nossa rotina afeta o sono.
“Eles estão sentindo a necessidade de dormir mais tarde e, com isso, atrasam o tempo de acordar, com o qual as horas de produtividade no trabalho, na família e no nível social estão sendo reduzidas”, diz a especialista.
Outro fenômeno que Celia tem notado é o distúrbio do pesadelo.
“Isso acontece quando o conteúdo dos sonhos é muito realista, muito vívido ou porque reflete situações que nos causam ansiedade. Situações desagradáveis como quando é difícil escaparmos de um lugar ou quando há um confronto ou uma briga”, ressalta.
“Esse distúrbio é agravado quando há situações em nossa vida diária que aumentam nossos níveis de estresse e ansiedade. De alguma forma, nosso subconsciente molda essas situações em nossos sonhos”.
Irritabilidade
Segundo Celia, estudos mostraram que pessoas que dormem menos horas têm níveis mais altos de ansiedade.
“Durante o dia, essas pessoas não têm vontade de fazer coisas, perdem o interesse pelas atividades que desejavam antes, carecem de energia. Elas podem ficar irritadas devido à falta de sono e tudo isso, no contexto de quarentena, pode complicar a vida familiar.”
Patricia Barato Salvador é psicóloga clínica e coordenadora de projetos da BH Bienestar em Madri, Espanha, que conta com uma rede de especialistas no cuidado emocional de pessoas de organizações que operam na Europa e na América Latina.
Segundo Patricia, muitas pessoas estão experimentando o fenômeno da atenção dividida durante a quarentena. “Meus recursos estão divididos: entre o que quero fazer no momento (trabalho, cuidar da minha família, ligar para os meus amigos) e o querer estar informado sobre o que acontece no mundo (com o coronavírus)”.
“É normal nos sentirmos mais irritados ou impotentes diante do que está acontecendo, porque o sentimento de não estar no controle é muito forte”, acrescenta.
Dificuldade de concentração
Patricia constatou que muitas pessoas que estão em isolamento também experimentam problemas de concentração.
“Embora eu esteja trabalhando em casa e economizando o tempo de deslocamento, na realidade, o que estamos descobrindo é que precisamos fazer mais tarefas em casa.”
Outras pessoas, diz a especialista, “se abandonam”. “Como não preciso sair de casa, fico de pijama o dia todo e há uma desorganização dos hábitos diários.”
“Posso fazer as coisas sempre que quiser: acordo sempre que quero, vou para a cama sempre que quero, quando quero. Isso acaba deixando louco o ritmo biológico interno.”
“O humor pode ser alterado. É comum haver um declínio, uma tristeza que vai, gradualmente, tomando conta. Pode haver dificuldades, também, porque não é possível se desconectar, pois o ambiente de trabalho se funde com o doméstico”, acrescenta.
A especialista também indica que a dinâmica dos meios de comunicação mais o fato de que o novo coronavírus e a doença causada por ele, a covid-19, são fenômenos novos, que ainda estão sendo descobertos, faz com que muitas vezes se produzam informações contraditórias. Isso, segundo Patricia, gera ansiedade nas pessoas.
Se você se sente ansioso em razão da pandemia, é importante que trate de limitar a quantidade de notícias que consome e sempre buscar fontes confiáveis de informação.
Dar um descanso das redes sociais pode ser uma alternativa para relaxar.
Microdespertares
As preocupações excessivas não levam apenas à insônia. Há pessoas que estão, por exemplo, enfrentando o oposto, a hipersonia (sonolência excessiva).
“Eles têm um sentimento de pesar, de depressão, típico de ficar em casa por um mês, como aconteceu em alguns países.”
“Os efeitos da quarentena levam a um processo de deterioração gradual: a princípio, as pessoas ficam em alerta e reagem rapidamente, mas então começa uma fase de desgaste”, diz.
Segundo Patricia, há casos que não tratam apenas de dificuldade para adormecer, mas também continuar dormindo: podemos acordar várias vezes durante a noite, porque o nível de ativação que temos durante o dia é muito alto.
“Quando a pessoa não está tranquila, os microdespertares, que ocorrem entre cada ciclo do sono, se tornam mais constantes”.
O neurologista Pérez também fala sobre o despertar precoce, que consiste em acordar mais cedo e não conseguir adormecer novamente pelo resto da noite.
Seja radical com pensamentos negativos
Para os especialistas, é fundamental que os pensamentos negativos sejam regulados durante a pandemia e o isolamento.
“Vou ser infectado. Eles vão me demitir. Ficaremos em quarentena por um ano inteiro”, essas são ideias que podem nos causar uma grande ansiedade e que afetam nosso bem-estar e nosso padrão de sono.
“São coisas que não aconteceram; temos que tentar focar no que está acontecendo: estamos em casa, estamos bem, temos comida, eles não me notificaram da empresa”, reflete Pérez.
Para evitar os pensamentos ruins, ele explica à BBC Mundo, é necessário recorrer à reestruturação cognitiva, ou seja, com base em dados objetivos e reais.
“Não se trata de procurar um pensamento positivo, mas de ser realista ao conter esse medo antecipado.”
A maneira de lidar com os pensamentos mais catastróficos, aqueles que tendem a maximizar um problema, um risco, é diferente dependendo da hora do dia, segundo Pérez.
“Durante o dia, temos que focar nossa atenção não no que pode acontecer, mas no que está acontecendo. E à noite, é melhor pará-los: ‘Basta. Agora não preciso pensar nisso.’ Você tem que cortar seu pensamento radicalmente para poder pensar em algo agradável e poder descansar”, orienta o especialista.
Estabeleça um ‘tempo de preocupação’
Segundo os psicólogos, se os pensamentos negativos são persistentes, é importante ter um “tempo de preocupação”.
“Vamos estabelecer um momento do dia, nunca à noite, em que nos dedicaremos voluntariamente à preocupação com o que nos incomoda”, ressalta Pérez.
“Os pensamentos são silenciados mais facilmente se eles tiverem um momento em que poderão sair. Então, se vamos permitir que eles apareçam em um determinado momento, o resto do dia vai parar de nos incomodar.”
A quarentena representa um grande desafio para milhões de pessoas, independentemente da idade. Por isso, especialistas ressaltam que é essencial que as pessoas entendam que não estão sozinhas. Caso precisem, elas devem pedir ajuda não apenas a familiares ou amigos, mas também a profissionais de saúde e a redes de apoio, como grupos voluntários, durante esse período.
Não pare de se comunicar com seus entes queridos, orientam os psicólogos.
“Temos que aproveitar esse momento, por mais difícil que possa parecer, para trabalhar a nossa resiliência. Essa capacidade do ser humano de superar uma experiência traumática e, graças a essa superação, ser capaz de atingir um nível de desenvolvimento pessoal que ele não teria acesso se não tivesse enfrentado esse episódio”, afirma a psicóloga Patrícia Salvador Barata.
“É um momento de desafiar a nós mesmos, alcançar objetivos, tentar melhorar nosso relacionamento com nossos parceiros, nossos filhos e aprender a gerar uma rotina, para que, quando voltarmos ao trabalho, nos sintamos mais fortes e seguros”, diz a psicóloga.
10 recomendações
Depois de conversar com Pérez, Celia e Patricia e ler as recomendações da Sociedade Espanhola de Neurologia “para uma boa noite de sono e controle adequado dos distúrbios do sono durante a pandemia de coronavírus”, apresentamos dez recomendações:
– Mantenha uma rotina: estabeleça um horário fixo para dormir e respeite esse horário. Para o cérebro é preciso ficar claro quando está acordado e quando não está.
– Procure se expor ao sol da manhã e ao ar fresco pela janela ou por uma varanda.
– É estritamente proibido levar uma preocupação para a cama: você deve pensar em algo agradável.
– A cama é para dormir: vamos fazer o corpo relacionar a cama com o sono, para que seja desativado quando chegar a ela. Por exemplo: não trabalhe, estude ou fale ao telefone na cama.
– Evite sonecas: mas se não puder, que elas não durem mais de 30 minutos.
– Não leve celular ou tablet para a cama, não apenas porque a luz inibe a secreção de melatonina (hormônio essencial para relaxar e dormir), mas porque você pode encontrar uma mensagem ou informação na internet que pode aumentar seus níveis de ansiedade e incerteza.
– Exercite-se durante o dia e evite fazer isso pouco antes de ir para a cama.
– Tente relaxar o máximo possível, principalmente antes de ir para a cama. Encontre algo que o distraia e ajude a clarear sua mente: medite, faça exercícios respiratórios, ouça música pacífica, entre outras atividades.
– Apesar da flexibilidade de trabalhar e estudar em casa, não fique acordado até tarde assistindo séries ou filmes. O entretenimento é essencial, mas “pular” a hora de dormir para uma maratona de sua série favorita terá um impacto quando você acordar. Assim, todo o seu ciclo de sono é alterado e corrigi-lo nem sempre é fácil.
– Consulte seu médico ou um especialista se sentir que seus problemas de sono estão piorando, pois é importante tomar as medidas a tempo.
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Fonte: Terra Saúde