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Seis jogos que ajudam a entender a história do futebol brasileiro




Em sua coluna no “New York Times”, o jornalista Rory Smith escolheu seis jogos para explicar a história do futebol. De forma brilhante, ele pinça não as melhores ou as mais importantes partidas, mas aquelas que quebraram paradigmas, mudaram conceitos, e ajudaram a fazer o nosso esporte favorito do jeito que ele é hoje, com suas ideias, verdades questionáveis e mitos. Em tempos de saudade de uma bola rolando em qualquer gramado do nosso país, e sem a pretensão de comparar em nada com o original, faço o mesmo, adaptando a lista à realidade nacional e de nossos clubes.

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Seis jogos que ajudam a entender o futebol brasileiro como ele é hoje. A única regra: partidas em que ao menos uma das camisas seja de um clube nacional. Os de seleção ficam para outra hora. Como na escolha gringa, a ideia aqui não é escolher o jogo com a técnica mais apurada, nem a mais grandiosa final, e sim seis confrontos que, pelo que representaram dentro ou até fora de campo, ajudaram na transformação do esporte até o ponto em que estamos.

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Smith, por exemplo, inclui um jogo da Copa do Mundo das mulheres, com a inteligente percepção que foi ali que a metade feminina do mundo foi mais incluída no planeta bola. Adoraria adicionar um jogo feminino na lista, mas acho que é um momento que ainda está por vir: somos reconhecidamente atrasados na questão. Sinto falta também na minha escolha de um jogo de algum time nordestino ? mas apesar das grandes vitórias do Bahia no Brasileiro de 1988 e do Sport na Copa do Brasil de 2008, me dou o direito de esperar um passo mais largo (talvez do tamanho da paixão de suas torcidas) dos times lá de cima para incluí-los aqui. Passo que talvez o Athletico já tenha dado, invadindo sem cerimônia a lista dos grandes clubes do país. Mesmo assim, os paranaenses ficaram de fora, assim como um grande jogo qualquer do Corinthians, esse fenômeno popular, que fecharia minha seleção no cabalístico número de 10 partidas.

Mas decidi que falar mais do que seis jogos seria trapaça e me tiraria o sofrimento da escolha. Enfim, uma lista é sempre uma opinião e eis a minha. Discordâncias não só são bem-vindas: são incentivadas.

Vasco 3×2 São Cristóvão

Campeonato Carioca. 12 de agosto de 1923. Estádio General Severiano, Rio de Janeiro

Elenco do Vasco que foi campeão do Carioca em 1923 Foto: Reprodução
Elenco do Vasco que foi campeão do Carioca em 1923 Foto: Reprodução

Historiadores da bola costumam colocar a profissionalização do futebol como divisor de águas na trajetória dos clubes brasileiros. Por sempre preferir o que acontece dentro de campo a decisões fora dele, acho que o primeiro título carioca do Vasco, em 1923, é o ponto de ruptura. Ainda que muitos clubes populares tenham tido sucesso pelo país antes e depois do Vasco, a história do time de São Januário é mais saborosa e impactante. Em um Rio de Janeiro em que a glória no futebol ainda era reservada à elite dos clubes da Zona Sul, o Vasco enfrentou todas as dificuldades e preconceitos para vencer com os “Camisas Negras”: um time recheado de negros e pobres, de uma agremiação de comerciantes e descendentes de portugueses da Zona Norte da cidade. Não foi um título, foi uma pequena revolução.

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Antes disso, o cruz-maltino enfrentou dificuldades até para disputar o campeonato: seu acesso da segunda divisão estadual, no campo, não foi respeitado, e até a exigência da construção de um estádio ?perfeitamente realizada pelos bravos associados, em outro lindo capítulo da história do clube ? foi feita. O jogo contra o São Cristóvão, em si, não tem nada demais: foi mais um em uma dominante campanha. A taça foi conquistada com uma rodada de antecedência. E o futebol brasileiro nunca mais foi o mesmo: se tornou muito mais popular.

Benfica 2×5 Santos

Copa Intercontinental, 11 de outubro de 1962. Estádio da Luz, Lisboa, Portugal

Santos 5 x 2 Benfica pelo Mundial de Clubes de 1962, em Lisboa Foto: Agência O Globo
Santos 5 x 2 Benfica pelo Mundial de Clubes de 1962, em Lisboa Foto: Agência O Globo

Os 39 anos de distância entre o primeiro título carioca do Vasco e o primeiro Mundial de Clubes do Santos foram protagonizados pela seleção brasileira: coube a ela perder uma Copa do Mundo em casa para vencer outras duas logo depois. Também foi tarefa dela acabar com a síndrome do vira lata do futebol brasileiro e alçar Pelé, preto como os bandeirantes vascaínos de 1923, a astro mor do esporte no mundo. A cereja do bolo – a conquista brasileira do mundo também através do futebol de clubes – veio no mesmo ano que o bi no Chile. Nunca mais na História o Brasil foi campeão mundial de seleções e clube no mesmo ano.

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A final contra o Benfica, em Lisboa, foi um resumo do maior time brasileiro já visto, o Santos dos anos 60: três de Pelé, um de Pepe e um de Coutinho, nomes que se repetiram por anos na lista dos gols de cada rodada. No jogo de ida, a histórico redenção do Brasil ao time da cidade praiana, com um Maracanã lotado para ver um clube paulista, cena que se repetiria no ano seguinte, no bi mundial, contra o Milan, para 120 mil pessoas. Decidir se o maior mérito santista foi o pioneirismo ou a beleza mostram o quanto o time foi importante para a história do futebol.

Cruzeiro 3×2 River Plate

Copa Libertadores, 30 de julho de 1976. Estádio Nacional, Santiago, Chile

Cruzeiro faz 3 a 2 no River Plate pela final da Libertadores de 1976 Foto: Acervo
Cruzeiro faz 3 a 2 no River Plate pela final da Libertadores de 1976 Foto: Acervo

Esta escolha poderia ser facilmente substituída pela vitória de 1 a 0 do Atlético-MG contra o Botafogo, na conquista do Brasileiro de 1971 ou pela decisão do campeonato nacional de 1975, entre Internacional e Cruzeiro, vencida pelos gaúchos. O time celeste entra na lista pelo passo a mais de conquistar uma competição internacional contra o grande River Plate – foi o primeiro time brasileiro depois do Santos de Pelé a vencer a Libertadores, quebrando um jejum de 12 edições com campeões argentinos ou uruguaios. A Raposa, aqui, serve como um símbolo de uma conquista geográfica.

Todos esses títulos, em especial o do timaço do Cruzeiro que tinha Nelinho, Piazza e Jairzinho, mudaram o mapa do futebol brasileiro. Os campeonatos nacionais, que tiveram seu começo no fim dos anos 50, só se firmaram com a criação do Brasileirão que conhecemos hoje, em 1971. Depois de meio século de futebol em que o foco era os estaduais do Rio e São Paulo, com o próprio torneio Rio-São Paulo considerado o mais importante do país, os times de Minas Gerais e Rio Grande do Sul provaram na bola que os clubes de lá eram grandes e incomodariam também na realidade nacional.

Prova da importância do título cruzeirense é que, depois disso, todos os grandes mineiros e gaúchos conquistaram a Libertadores ao menos uma vez (o Grêmio, em 1983, 1995 e 2017; o próprio Cruzeiro, de novo, em 1997; o Internacional em 2006 e 2010 e o Atlético-MG, em 2013), mostrando que, pra além de seus estados, a fronteira do país era pouco para suas grandezas.

Flamengo 3×0 Santos

Campeonato Brasileiro, 29 de maio de 1983. Maracanã, Rio de Janeiro

Flamengo fez 3 a 0 no Santos, no Maracanã, para vencer o Brasileirão de 1983 Foto: Anibal Philot
Flamengo fez 3 a 0 no Santos, no Maracanã, para vencer o Brasileirão de 1983 Foto: Anibal Philot

Torcedores rubro-negros irão dizer, com razão, que a final do Mundial, em 1981, contra o Liverpool, é mais marcante. De fato, mas a conqusita do tri do Brasileiro é um último capítulo de uma primeira temporada de uma equipe fantástica que marcou o futebol brasileiro dentro e fora de campo. Mas não é só por isso, afinal, o Brasil tem equipes fantásticas sem jogos nesta seleta lista. Já o Flamengo é aquele caso de estar no lugar e na hora certo.

A Libertadores e o Mundial de 1981, e os três títulos Brasileiros em quatro anos, aconteceram em uma época de campeonatos nacionais e intercontinentais consolidados e em um tempo de popularização das transmissões esportivas para todo país, a cores (sorte que grandes times como o Botafogo da década de 60, por exemplo não teve). Foi nesse contexto que todo o país conheceu a habilidade estrondosa de Zico e seu companheiros, que fizeram do Flamengo o maior fenômeno popular entre clubes do país, com torcida numerosa em quase todos os estados da federação, e maioria no Rio de Janeiro.

O jogo contra o Santos é o meio da trajetória do tal “Flamengo dos anos 80” (que ainda ganhou a Copa União em 1987 e dois Cariocas). Um passeio no Maracanã que vinte anos antes vibrara com Pelé e o alvinegro praiano. Gols de Zico, Leandro e Adílio, para lembrar que o domínio tinha passado de mãos.

São Paulo 3×2 Milan

Copa Europeia/Sul-Americana, 12 de dezembro de 1993. Estádio Nacional, Tóquio, Japão

São Paulo foi bicampeão mundial, em 1993, ao bater o Milan Foto: SPFC/Divulgação
São Paulo foi bicampeão mundial, em 1993, ao bater o Milan Foto: SPFC/Divulgação

Quando o São Paulo conqusitou o bicampeonato mundial de clubes, a seleção brasileira não conquistava uma Copa do Mundo há 23 anos e não se imaginava que o jejum acabaria no ano seguinte. Na edição em que tinha o time mais bonito, na Copa de 1982, o técnico derrotado foi o mesmo do Tricolor Paulista histórico: Telê Santana. Além de iniciar uma trajetória que fez do São Paulo o time mais vencedor internacionalmente do Brasil, aquela equipe provou que o Brasil poderia estar novamente no topo quando todo mundo duvidava.

Apesar do time não jogar tão bonito como o Brasil da Copa da Espanha, o São Paulo dos mundiais do Japão se mostrou competente tanto em vencer times violentos e fechados da América do Sul na Libertadores, como celebradas equipes europeis da época: o Barcelona do técnico Cruyff e o Milan comandado por Fabio Capello.

Capitaneado por Toninho Cerezo, que estava na Tragédia do Sarriá, em 1982, o time foi uma transição para a vitoriosa geração de 1994, já que os tetracampeões Zetti, Ronaldão, Raí e Cafu também estavam no time. O São Paulo provou, duas vezes, que o melhor time do Brasil era capaz de vencer os melhores da Europa, ainda que eles já ensaiassem passos do poderio econônomico com o qual tirariam nossos craques daqui. O futuro era preocupante, mas o presente vitorioso.

Santos 0x4 Barcelona

Mundial de Clubes da Fifa, 18 de dezembro de 2011. Estádio Internacional, Yokohama

Messi supera Rafael Cabral na goleada do Barcelona sobre o Santos (4 a 0) no Mundial de Clubes de 2011 Foto: KIM KYUNG-HOON / REUTERS
Messi supera Rafael Cabral na goleada do Barcelona sobre o Santos (4 a 0) no Mundial de Clubes de 2011 Foto: KIM KYUNG-HOON / REUTERS

No confronto entre o que de melhor tinha surgido no futebol brasileiro no começo da década, o Santos de Neymar, contra o grande time do mundo no século, o Barcelona de Guardiola, houve quem tivesse a inocência de achar que o jogo seria equilibrado, muito por conta dos protagonistas: o craque brasileiro em ascensão contra o monstro Messi vivendo um de seus milhares auges. A acachapante derrota por 4 a 0, um verdadeiro baile de bola, foi um choque de uma realidade já instaurada no futebol nacional.

Apesar do título do Corinthians contra o Chelsea, no ano seguinte, o jogo foi uma prova irrefutável de que o futebol brasileiro estava alguns patamares abaixo, e que vencer os melhores europeus nos raros confrontos do Mundial seria coisa da vez mais rara. Os times brasileiros agora faziam jogos difíceis e eram até derrotados por equipes africanas e asiáticas.

Um Neymar cabisbaixo dizendo que tinha muito a aprender foi um símbolo da final. Era também a última temporada do último grande craque revelado por aqui: em 2013 Neymar foi para o Barcelona e em sete anos não revelamos ninguém capaz de tirar seu protagonismo como principal jogador brasileiro no mundo. E o futebol nunca mais foi o mesmo por aqui, apesar do ótimo Flamengo de 2019, que só surgiu, curiosamente, depois da vinda de um técnico europeu. Ainda assim, celebrou o mais perto que se chegou de um título mundial nos últimos seis anos: uma derrota na prorrogação.

Fonte: O Globo


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