Com dólar e euro em alta e o real capotando ladeira abaixo, os clubes brasileiros provam o gosto agridoce do cenário atual do câmbio. É ótimo para quem vende jogadores e disputa competições internacionais, ruim para endividados no exterior e motivo de atenção nas negociações em curso envolvendo moedas estrangeiras.

O processo de desvalorização do real antecede a pandemia do coronavírus. Na sexta, o dólar bateu R$ 5,32. Em 1º de janeiro, estava a R$ 4,02. O euro, por sua vez, fechou a semana a R$ 5,74, contra R$ 4,51 do começo do ano.

No Flamengo, mesmo com o futebol parado, a conversa é em euro, pois é preciso renovar o contrato com o técnico Jorge Jesus. O vínculo atual expira ao fim de maio. A pretensão inicial do português é de ? 7 milhões por ano.

A janela de transferências traz sinais do comportamento rubro-negro em relação ao câmbio. Gabigol foi comprado junto à Inter de Milão por ? 16,5 milhões ? ou R$ 76,6 milhões, já que a cotação do euro usada na negociação era de R$ 4,64, segundo informação no balanço do clube.

Na outra ponta, a principal venda do ano foi a do meia Reinier ao Real Madrid, por ? 30 milhões. Além disso, o rubro-negro tem parcelas a receber de outras negociações, como ? 2 milhões do Lyon pelo meio-campo Jean Lucas.

O Flamengo já fez a projeção de entradas e saídas de recursos em moeda estrangeira. A aposta é no chamado hedge natural. Há cobertura no fluxo de caixa pelo menos até o quarto trimestre de 2021.

? Hedge é uma proteção. O conceito é que para cada dívida em moeda estrangeira você também tenha receita. O clube também pode fazer uma trava, comprando euro ou dólar antecipadamente com uma cotação estabelecida para não perder o controle ? explica o economista César Grafietti.

O rubro-negro encerrou 2019 com 8% do seu passivo em moeda estrangeira. A prestação de contas ainda aponta que 35% dos R$ 87,6 milhões que o Fla tem em caixa são em moeda estrangeira. A administração do clube entende que o risco da variação do dólar não é relevante frente à atual posição patrimonial e financeira.

A confiança do Flamengo passa pela projeção de bom desempenho na Libertadores ? no mínimo, alcançando as semifinais. As cotas de participação da competição são pagas em dólar. Na fase de grupos, os times recebem US$ 3 milhões (R$ 15,9 milhões). A Conmebol, inclusive, já avisou que 60% desse valor (R$ 9,5 milhões) serão disponibilizados de forma antecipada. Isso vale para os outros seis brasileiros: Palmeiras, Grêmio, São Paulo, Internacional, Santos e Athletico.

Mercado alterado

Na venda de jogadores para o exterior, a cotação considerada é aquela do dia em que o dinheiro recebido cai na conta. Mas obter receita de fora será tarefa complicada diante parada geral do futebol por causa do coronavírus. A tendência nos mercados tradicionalmente compradores é queda de investimentos. Por isso, as vendas já concretizadas ganham relevância ainda maior.

Pensando nisso é que o São Paulo tenta antecipar junto ao Ajax parte do dinheiro da venda de Antony. Viria a calhar em tempos de receitas escassas. Para o Corinthians, o lado bom é a venda de Pedrinho para o Benfica: 20 milhões de euros.

Quem tem funcionários estrangeiros, assim como o Flamengo, precisa de um cuidado adicional em relação aos contratos. Mesmo se os vínculos tenham sido firmados antes da instabilidade cambial.

? Dólar impacta na compra e na venda. Com salários, tudo depende do contrato de cada clube. Normalmente, faz-se uma proteção diante de variações. Além da negociação da cotação do câmbio, em si, o clube discute também um limite para variação cambial ? diz Anderson Barros, diretor de futebol do Palmeiras.

O zagueiro Gustavo Gomez tem contrato balizado em moeda estrangeira no clube paulista. Em casos como esse, a desvalorização do real mexe com o jogador, já que o acordo original foi traçado imaginando um cenário cambial em que o dólar valia menos frente à moeda brasileira. Como o contrato tem as amarras citadas por Anderson Barros, o jogador se vê “perdendo? dinheiro.

O Atlético-MG, do técnico argentino Jorge Sampaoli, também usa a tática do balizamento de valores e do limite de variação.

Ajuda e atrapalha

Para o Vasco, a desvalorização do real foi boa para desafogar as finanças na reta final de março. O clube recebeu 500 mil euros (R$ 2,75 milhões) via mecanismo de solidariedade de uma transação envolvendo o volante Souza. Isso foi crucial para o pagamento da parcela que faltava do 13º de 2019.

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O Fluminense encara o outro lado da moeda. O time foi condenado na Fifa por causa dos pagamentos atrasados referentes às negociações de Sornoza e Orejuela junto ao Independiente Del Valle. A dívida é em euro e dólar. O total aproximado, com juros e conversão para real, é R$ 19 milhões. O tricolor vai parcelar e negocia com os equatorianos as formas de pagamento. Na Série B, o Cruzeiro é outro com conta pendurada na Fifa.

? As decisões dos órgãos decisórios da Fifa são proferidas de acordo com a moeda prevista na transação ou no contrato executado. Pode até ser o real, mas em mais de 90% dos casos é dólar ou euro. Assim, quando a dívida se tornar exigível, o devedor deverá comprar dólares ou euros com a cotação do dia do pagamento, o que hoje representa muita coisa ? explica o advogado Eduardo Carlezzo.

No Botafogo, o câmbio dificultou as conversas com Yaya Touré. O marfinense mora em Londres e lida com uma libra que vale mais que o euro. Logo, o aumento do valor pedido se deu na tentativa de compensação da desvalorização do real. Para o futuro alvinegro, há alguns gatilhos armados em moeda estrangeira. Bruno Nazário, por exemplo, chegou por empréstimo do Hoffenheim (ALE) com valor de compra fixado em 1,2 milhão de euros.