Os torcedores do Manchester City não se acham vítimas. Eles são ? e se sentem ? mais como os sortudos, os que ganharam na loteria. Mas na verdade, é mais do que isso. Qualquer idiota pode ganhar na loteria. O Manchester City não: ele mereceu ganhar.

Por anos, o clube vagou pela escuridão, conhecendo nada além de frustração, rancor e penúria, cumprimentando cada um deles com um sorriso irônico. Enfrentaram a zombaria de seus rivais e, em particular, o desdém dos vizinhos do United. Até que, num raio surgido de um céu escandalosamente azul, tudo mudou.

De repente, o Manchester City ganhou títulos. De repente, o Manchester City era o melhor time na Inglaterra. De repente, o Manchester City tinha o melhor técnico do mundo. De repente, o Manchester City quebrou recordes: 100 pontos numa temporada, uma inédita tríplice coroa doméstica. Tudo soava, em algum nível, como uma recompensa cármica depois de tantos anos de sofrimento.

A torcida sabia a quem agradecer. Uma bandeira foi pendurada no último andar das arquibancadas do Etihad Stadium há algum tempo; talvez uma década. Ela veio muito antes da tríplice coroa, do supertime, da chegada de Pep Guardiola. A memória é traiçoeira, mas ela deve estar lá desde antes da chegada de Sergio Agüero e do primeiro título da nova era, em 2012. Lê-se nela, em inglês e em árabe: “Manchester te agradece, sheik Mansour”.

Os torcedores do Manchester City tampouco agem como vítimas. Ou, melhor dizendo, uma parte dos torcedores age. Logo, escrever qualquer coisa que não seja sobre o maravilhoso estilo do time de Guardiola, a majestade sublime de David Silva e a cintilante habilidade de Kevin de Bruyne requer pele de rinoceronte.

Basta afirmar que talvez o investimento de Abu Dhabi no Manchester City não seja exclusivamente calcado no amor pelo esporte, mas, sim, no desejo de melhorar a reputação de uma nação do Golfo Pérsico com pouca tradição em prezar direitos humanos; é garantido que virá uma explosão altamente concentrada de fúria, ainda que relativamente pequena.

Ao longo do último ano, isso também acontecia quando alguém mencionava as alegações despertadas pelos e-mails vazados no escândalo Football Leaks: neles, o City não apenas driblou as regras financeiras da Uefa, como também enganou os investigadores que se debruçaram sobre suas contas.

A bile brota, tão certa como o sol: acusa-se o jornalismo de estar em “conluio” com um misterioso cartel de clubes, e também com a Uefa, a fim de prejudicar o City. Na semana passada, a retórica só se intensificou, uma vez que a Uefa baniu o City da Champions League por dois anos, não só por quebrar as regras de Fair Play Financeiro, mas também por enganar os fiscais.

O clube, claro, afirma veementemente sua inocência. Promete apelar à Corte Arbitral do Esporte e além, de posse daquilo que chama de prova “irrefutável” de que nada de errado foi feito. Os torcedores acreditam nisso, sem questionar. Para eles, tudo se resume a uma caça às bruxas.

E deixam essa opinião clara aos jornalistas nas redes sociais ? na maioria das vezes em forma de ataques inofensivos, embora preocupantes às vezes ? e à Uefa, agora tida como inimiga do City, na vida real.

Os torcedores do City já zombam do hino da Champions League há tempos por conta do que consideram uma vingança contra o clube; durante a partida contra o West Ham na última quarta, alguns cartazes chamavam a organização de “máfia”. Planejam-se protestos no futuro, quando o Real Madrid visitar Manchester em algumas semanas.

Fúria e irritação não são o que se espera de vítimas, e é exatamente isso que os torcedores do City são neste momento.

Torcer por um time não é ? embora muitos infiéis creiam nisso ? uma escolha de consumo. Trata-se de parte integrante de como compomos nossa identidade. Frequentemente, de uma grande parte dela. Há paralelos, de acordo com alguns estudos, com a maneira como vemos nosso gênero, nossa sexualidade, nossa etnia ? mesmo que, devemos ressaltar, não seja tão importante quanto esses traços.

Torcer, enfim, pode não ser parte integrante de quem somos, mas é parte integrante de como nos vemos. O sucesso e o fracasso de um time é visto como autorrelevante, conforme explica Daniel Wann, um professor de psicologia da Universidade Estadual de Murray, no Kentucky.

Imagine então ouvir que o mais glorioso período da história de seu time ? justamente aquilo com que você sonhou por anos e anos ? foi ilegítimo (de acordo com um regulamento que você não entende totalmente e que parece feito sob medida para sabotar suas ambições) e que, além disso, o simples ato de celebrar essas taças é uma prova de sua bússola moral distorcida.

Torcedores sempre vão defender seus clubes contra qualquer coisa; o problema é que a palavra “clube” é dificílima de descrever. Não se trata, claro, de seu proprietário: isso são só os negócios. Não se trata dos jogadores e do técnico: isso é o time. O clube é algo além disso: é uma memória compartilhada, um escudo, as cores, o espírito, tudo isso passado de pai para filho.

Esses significados são frequentemente confusos e embaralhados, o que deixa os torcedores na curiosa posição de defender um magnata, ou uma empresa, ou neste caso, um Estado, porque a manutenção da reputação deles parece significar algo para o bom nome da instituição. Este é o preço que a torcida do Manchester City está pagando por seus sonhos terem se tornado realidade: eles têm de ver seu clube deixar de ser um time esportivo para se tornar moeda num jogo de potências geopolíticas. Algo que, certamente, eles não pediram para ter.

Se as torções psicológicas já são desafiadoras, há ainda um outro aspecto na história do Manchester City que nos lembra que os torcedores de um clube, aqueles que não tratam como uma opção emocional seu envolvimento com o City, merecem um pouco de compreensão, no fim.

Tudo que o Abu Dhabi United Group, o fundo que comprou o clube, fez desde que comprou o City em 2008 sugere que a relação será de longo prazo. A criação de uma cadeia de clubes, instigada pelo principal executivo, Ferran Soriano, deixa claro que não se trata de um jogo de tiro curto.

Mas ao longo de sua batalha contra a Uefa, o City deu a impressão de que prefere alterar fundamentalmente e para sempre o panorama do futebol em vez de se submeter às regras de que não gosta. Essa mensagem foi suavizada nesta semana, quando Soriano pareceu brandir a bandeira branca numa entrevista à TV oficial do clube, mas o City permanece determinado a lutar contra as acusações até o fim.

Mas, se o apelo à Corte Arbitral do Esporte der em nada, e se depois a Corte Suprema da Suíça decidir contra o City, o que acontece? O clube continuará a lutar, forçando os torcedores a escolherem entre seu time e, num certo sentido, a própria estrutura do futebol?

Ou será que Abu Dhabi, convencida dos limites que enfrenta, começará a se retirar paulatinamente do futebol? Será que encontrará um jeito melhor de elevar sua reputação no mundo, vendendo suas posições no clube para o governo da China, ou hedge funds de Nova York?

Este é o problema quando clubes não são tratados como instituições de uma comunidade, mas como ativos rentáveis, feitos para serem comprados e vendidos, ao sabor daqueles que não têm planos inteiramente esportivos, mas também financeiros ou, como neste caso, políticos. O clube como um todo ? inclua-se aí a parte que os torcedores consideram como parte deles mesmos ? é totalmente dependente dos caprichos dos negócios.

Os negócios fizeram os sonhos da torcida do City se tornarem realidade, é claro, e eles sem dúvida serão eternamente gratos por isso. Mas eles também têm o poder de dar fim a esses sonhos na hora que quiserem, deixando aos torcedores a tarefa de se ajustarem a uma nova realidade ? uma que eles nem pediram, nem necessariamente compreendem.