Depois de uma aquecida janela de transferências no verão europeu de 2009, o então técnico do Arsenal, Arsène Wenger, identificou no rival Chelsea um comportamento agressivo no mercado. Querendo denunciar uma concorrência desleal por causa do investimento pesado feito pelo magnata Roman Abramovich, o treinador cunhou uma expressão que ganhou popularidade no dicionário da bola: a acusação era de doping financeiro. O mesmo Wenger posteriormente classificou com esse termo o fato de o Manchester City e o Real Madrid despejarem caminhões de dinheiro no mercado, sempre apontando o dedo para o desequilíbrio esportivo.
Nesta sexta-feira, o Manchester City foi punido por inflar as receitas de patrocínio e não poderá participar das próximas duas edições da Liga dos Campeões, além de pagamento de multa. O proprietário, o sheikh Mansour bin Zayed Al Nahyan, financiou a maior parcela dos patrocínios e maquiou as contas do clube. O clube irá recorrer.
Na Uefa, o termo doping financeiro não é usado oficialmente. Ele não aparece em regulamentos, publicações ou material de comunicação, segundo Sefton Perry, chefe do setor de inteligência analítica da entidade. Mesmo assim, a política é não fechar os olhos para eventuais pedaladas fiscais dos clubes. O Fair Play Financeiro, desdobramento do programa de licenciamento de clubes, é a ferramenta para isso.
? Ao longo dos anos, vários clubes foram sancionados por não alcançar o mínimo financeiro ou outros requisitos. Para qualquer sistema funcionar, é crucial ter sanções e o conhecimento de que elas serão aplicadas ? conta Perry, que enviou ao GLOBO uma lista de 65 clubes proibidos desde a temporada 2004/2005 de participar de Champions League ou Europa League por alguma transgressão à regulamentação.
Em países como Espanha, Inglaterra e Itália, o Fair Play nacional é um controle que corre em paralelo para delimitar limite de gastos, verificar a origem das receitas ? se o orçamento é factível ou não ? e estabelecer um teto de folha salarial.
O desafio da Uefa, como indicava a reclamação de Wenger, é controlar se o dinheiro inserido nos clubes excede ou não o limite estipulado de patrocínio. Em clubes usados como plataforma de propagação da imagem de alguns países, como o Qatar (PSG) e os Emirados Árabes Unidos (Manchester City), a atenção é necessária.
? O doping se caracterizaria se um patrocinador for responsável por injetar mais de 30%, ou outro percentual delimitado, da receita bruta do clube no balanço. Aqui no Brasil, não temos esse caso verificado ainda. Nem a Crefisa chega a isso no Palmeiras. Lá, a investigação recai sobre Manchester City e PSG, por exemplo ? relata o líder de esportes da EY no Brasil, Alexandre Rangel.
Para quem faz o dever de casa e anda na linha, os mecanismos de controle são muito bem-vindos. No Atlético de Madrid, por exemplo, há a consciência de que a credibilidade das competições ficaria em jogo se abrissem mão do Fair Play, mesmo em uma Liga Espanhola em que 16 dos 20 participantes são empresas (sociedades anônimas desportivas, as SADs).
? Há exemplos claros de controle da Uefa e ação contra clubes que apresentaram contratos que não eram muito críveis. O controle financeiro é fundamental se quisermos que as competições sigam sendo atrativas para os torcedores ? avalia Pablo Jiménez, secretário-geral e consultor financeiro do clube madrilenho.
Futebol brasileiro
Numa visão ao pé da letra, o doping financeiro só se configura, de fato, em um ambiente no qual existem regras de controle de receitas e despesas dos clubes. Tendo uma barreira, então, os dirigentes dariam um jeito de ludibriá-la. Não é o caso atual do Brasil, já que a CBF ainda não colocou em vigor o Fair Play Financeiro ? braço econômico do programa de concessão de licenças aos clubes para disputarem as competições.
A promessa é que as diretrizes sejam lançadas ainda em 2020, com propósito educativo. Pelo modelo que está em construção, os clubes receberão coeficientes para indicar se estão de acordo com os requisitos mínimos. Eventuais punições, segundo projeção da CBF, virão em quatro anos, sob o argumento de que também houve período de adaptação na Europa.
Levando em conta o que aconteceu com o Manchester City, um caso que deixa os dirigentes da CBF de olhos abertos é o Red Bull Bragantino. Essa análise será futura.
Mas em um cenário nacional onde muitos clubes ainda têm dificuldade para equilibrar as contas, há quem veja, na prática, uma possibilidade de adaptação do conceito de doping financeiro. Uma resignificação. Equipes que montam times fortes e mais caros do que podem bancar se enquadrariam.
Exemplos não faltariam. No Vasco, Abel Braga já chegou ouvindo do presidente Alexandre Campello o cenário que se avizinhava: “Vou te pagar, mas não pense que vou te pagar em dia”. Se quisesse assumir o time, como o fez, o técnico precisava da consciência do atraso. O alerta não veio de um clube qualquer, mas do 12ª colocado do Brasileirão e um dos representantes brasileiros na Sul-Americana. Contabilmente, o ano de 2019 não acabou em dezembro Vasco, que deve salários de dezembro e 13º a jogadores e funcionários. O time não caiu e ainda alcançou vaga em competição internacional. O CSA e Avaí, por outro lado, foram rebaixados com contas em dia. Eis o desequilíbrio atacado por Wenger, embora a raiz do problema seja outro.
? Sendo mais pragmático, vejo doping financeiro como usar a parte do dinheiro que deveria ser destinado a uma área, como pagamento de impostos, credores, e usar para se alavancar desportivamente. Acaba se criando um doping porque o clube deveria pagar alguma coisa e, ao invés disso, está se alavancando ? afirma o advogado Luiz André Mello, que presidiu a Autoridade Pública de Governança do Futebol (AFPFut) entre setembro de 2016 e julho de 2019.
O que já existe no Brasil, em termos de controle, é uma previsão em regulamento no Brasileirão de punição aos clubes que tiverem salários atrasados via Justiça Desportiva, desde que haja denúncia por parte dos jogadores ou do sindicato que o representa. Conforme jurisprudência recente do STJD em um processo contra o Figueirense, aceita-se notícia de infração via Ministério Público.
Para mudar a cultura do atraso salarial ? esse doping financeiro adpatado ? a medida é pouco eficaz. Mas a ausência de regulamentação rígida não diminui os riscos administrativos a quem ignora a receita básica de gastar menos do que ganha.
? Você tem que pagar salários e impostos em dia. O Cruzeiro até conseguiu conquistas recentes. O Vasco não consegue porque esse caminho tem um limite. Nenhum atleta com um pouco mais de qualidade vai aceitar esse tipo de situação. O Cruzeiro quando explodiu, explodiu de uma vez. Chega um momento em que não se consegue fazer a bicicleta girar. E aí acabou. Não é só cair de divisão. É desabar porque não tem receita ? alerta o economista e consultor de gestão e finanças do esporte, César Graffieti.
Boa prática
No Brasil, quem tem dado bom exemplo, contrastando com o colapso do Cruzeiro e a dificuldade dos vascaínos, também se vê em condições de decolar após a instalação do Fair Play financeiro. Não é só o Flamengo que arrumou a casa. Do Nordeste, destacam-se Bahia, Fortaleza e Ceará, que se mantiveram na Série A para 2020 e têm se dado bem na concorrência por jogadores por causa da certeza de salário em dia.
? O Ceará não usa drogas. Não se dopa. Gostamos de nos manter saudáveis. Assistimos a esse espetáculo sabendo que o barco desses clubes uma hora vai afundar. Alguns de forma bem caótica. Acho que vai haver uma nova configuração no futebol nos próximos anos. Ser grande ou mais tradicional não será suficiente ? aposta Robinson de Castro, presidente do alvinegro cearense.
Fonte: O Globo