Pode haver alguém que entenda mais de Flamengo do que eu. Pode haver alguém que entenda mais de Vasco do que eu. Mas não acredito que haja alguém que entenda mais dos dois clubes do que eu.

Comecei a fazer educação física em 1974, na UFRJ. Mamãe, dona Nadir, era costureira da família de um diretor de basquete do Flamengo. Eu comecei como estagiário de preparador físico do departamento infanto-juvenil do Flamengo. Em 1977, eu já estava me formando quando abriu um curso de administração esportiva na PUC, de um ano. Quando acabei o curso, o Márcio Braga chegou à presidência e assinou minha carteira. Meu último trabalho foi no Vasco, em 2018.

Eu já tinha um bom espaço no departamento infanto-juvenil, com atribuições do futebol dente de leite à patinação artística. Um dia, o Márcio Braga me perguntou o que eu sugeria para aquele departamento. Eu disse que o departamento poderia ser perfeitamente extinto, com o dente de leite absorvido pelo departamento de futebol, e as atividades recreativas seguindo para a parte social. “Mas aí você vai perder o emprego?, ele me disse. “Mas o senhor me pediu uma análise profunda?, disse. Ele gostou. Depois eu fui convidado pelo Isidoro Danon para coordenar os esportes olímpicos do Flamengo. Foi minha grande faculdade: pude conhecer o Flamengo de A a Z.

Fui o primeiro gerente de futebol do Brasil, graças ao Luiz Augusto Veloso (presidente do Fla nos anos 1993-94). Me chamar de “Deus do Vestiário?, como o Kléber Leite (ex-presidente seguinte) fala, é um pouco de exagero. Mas ao trabalhar com os meninos do futebol, percebi que se trata de uma categoria que vem de criação modesta com expectativa declarada de projeção. No esporte olímpico, vi o outro lado: atletas de outro nível social sem grandes expectativas da vida profissional de atleta. E eu tive que, no tranco, falar com eles todos: o cara do basquete reclamando que a tabela não flexionava, o cara da esgrima reclamando que o armeiro não tinha temperado bem a lâmina. Aprendi a olhar nos olhos dos atletas quando havia uma necessidade ou não. E o futebol é necessidade, é a chance de melhorar de vida.

O Mozer era assim. A gente falava , ele arregalava os olhos e parecia querer absorver cada vírgula. Ele dizia: “Essa é minha vida, professor?. Foi o primeiro cara que eu vi atuar com trava de alumínio, ainda no sub-20. Ele calçava aquela chuteira e saía batendo pé, para que o time adversário se intimidasse com ele. O futebol era a grande tábua de salvação deles. Na geração de ouro do Zico tudo era assim.

Prestava muita atenção no (supervisor de futebol profissional) Domingos Bosco, que Deus o tenha. Copiei dele o entendimento dos atletas. Ele me dizia: “Quando estiver tudo uma merda, acabe de esmerdalhar tudo, que depois assenta?. E é verdade. Futebol é a arte de administrar crise. Todo santo dia.É a chuteira, é a falta d?água, é a brincadeira mais ousada.

Quando o Flamengo lança a campanha “Craque, o Flamengo faz em casa?, deram a ideia de fazer a foto daqueles atletas formados lá. Posaram Júnior, Zico, Cantarelli, Figueiredo…. no dia da foto, o Toninho Baiano começa a zoar: “Tá tudo bem aí nessa foto, mas se eu não estiver jogando, não ganha?. Ciúme. O Domingos teve que intervir.

Em 1981, o Vasco me chama para ser supervisor da base. Aí encontro uma geração maravilhosa, com Romário, Geovani, que tinham sido campeões mundiais de juniores, e outros, como Mauricinho. A guerra de egos existia, mas no campo eles se resolviam.

A pior guerra foi entre Romário e Edmundo, em 2000. A torcida se divide, o grupo se divide, e tem a parte do time que não está nem aí e fica incendiando. Que fica fazendo o leva-e-traz. Aqueles atletas que estavam sem jogar, os encostados.

Mas você tem que ter sorte, e eu tive. Trabalhei com Ricardo Rocha no Vasco, com o Edinho no Flamengo de 1987. Esses jogadores criavam um ambiente maravilhoso. O Ricardo, pela graça, um sujeito sensacional. O Edinho, pela experiência na Itália, o exemplo de profissionalismo. Ajudava muito.

No caso do goleiro Bruno, em 2010, foi desesperador. Não acreditei, e até hoje eu tenho dúvida. Eu falava: “Como é que dormia, viajava, trabalhava e não percebia nada?? Às vezes você está tão perto e tão longe.

Já o Adriano me ajudou muito a ter um entendimento diferente da vida. Ele só fazia mal a ele mesmo, não fazia mal a ninguém. Ele tem um sentido de família muito forte, cuida da avó, da mãe, do irmão… mas quando vira a bandeira 2, depois das nove da noite, ele quebra tudo. Mas 6h da manhã ele está lá, cândido de novo. Mas ele me ajudou muito naquele título do Brasileiro de 2009. Sujeito-homem.

É verdade, sou gago. E adorei o filme “O discurso do rei?. Os meninos encarnavam em mim, mas isso tornava minha liderança mais humana. Porque viam que eu, negro e gago, tinha chegado lá. E sabiam que poderiam ir longe também.

Aos 65 anos, comecei a ter um Parkinson que não gera tremores. Mas meu corpo produz menos dopamina, e isso gera limitações de movimentos. Preciso estar sempre em movimento. Se ficar duas horas parado num carro, só saio rebocado. É a vida, é a idade. Mas quando olho para trás, meu maior orgulho é o respeito que tenho tanto no Flamengo quanto no Vasco. Nunca me viram como inimigo. Isso me arrepia.

*Em depoimento a Márvio dos Anjos