Não importa que tenhamos memórias falsas, diz o britânico Martin Conway, o importante é que elas se encaixem com a ideia que temos sobre nós.
A chamada “memória autobiográfica” é o que esse professor de psicologia cognitiva da City University of London, no Reino Unido, e diretor do Centro de Memória e Direito da mesma universidade vem estudando há 40 anos. Na visão dele, todos criamos inadvertidamente recordações que não correspondem à realidade, mas que se adequam à história que construímos sobre nossa vida e personalidade.
“Memórias autobiográficas, de períodos mais longos, de meses, anos ou décadas, servem mais para nos ajudar como indivíduos, para nos definir”, diz ele em entrevista à BBC News Brasil. “Então não é particularmente importante que a memória seja bastante precisa. O que importa é que seja consistente, que se encaixe com a sua vida, com o que você constrói sobre você mesmo. E esse processo pode ser inconsciente.”
Conway também é contrário às críticas que associam novas tecnologias a uma espécie de “terceirização da memória”. “Sempre soubemos que nossa cognição é imperfeita, e sempre buscamos maneiras para suplementá-la. Pessoalmente, eu acho bom. A tecnologia expande nossa memória, não o contrário”, afirma.
Ele diz que a memória não é um músculo que pode ser exercitado. “Aprender um instrumento musical, uma nova língua, uma nova área de conhecimento, tudo isso é bom. Vai te fazer mais inteligente e esperto. Mas não vai fazer sua memória melhorar”, afirma. A melhor coisa para a memória, diz ele, é socializar e conviver com amigos e familiares — algo que promove aprendizados e que, segundo ele, faz bem para a memória e para a mente como um todo.
Leia os principais trechos da entrevista da BBC News Brasil com Conway:
BBC News Brasil – O que é memória? É correto dizer que é a recordação de uma experiência ou de um evento?
Martin Conway – É uma pergunta difícil. Não é uma recordação literal. É quase como uma obra de arte baseada em uma foto do passado. E por causa disso a memória frequentemente contém erros. Podemos defini-la como uma representação com uma importância pessoal grande que tem alguma conexão com o passado, mas que não necessariamente representa o passado como uma foto, um vídeo ou uma recordação no diário faria.
BBC News Brasil – Por que o Sr. diz que ela frequentemente contém erros?
Conway – Às vezes, podemos checar o conteúdo de memórias contra fatos objetivos, e quando o fazemos, percebemos que muitas vezes nossas memórias contêm erros. É comum que sejam erros sobre detalhes. Também podemos nos lembrar de coisas que nunca aconteceram. Todo mundo já passou por isso. Memórias são essas construções mentais que são como obras de arte, e às vezes obras de arte são fictícias, não?
Para entender por que pode conter erros, precisamos entender as diferentes funções das memórias. Uma delas é recordar o passado imediato. Esse tipo de recordação é razoavelmente preciso. Outro tipo, que chamamos de memórias autobiográficas, de períodos mais longos, de meses, anos ou décadas, servem mais para nos ajudar como indivíduos, para nos definir. E então é nesse momento que não é particularmente importante que a memória seja bastante precisa. O que importa é que seja consistente, que se encaixe com a sua vida, com o que você constrói sobre você mesmo. E esse processo pode ser inconsciente.
BBC News Brasil – Então as memórias definem a percepção que temos sobre nossa vida? Ou é o contrário: o que construímos sobre nossas vidas define nossas lembranças?
Conway – As duas coisas interagem. É algo que chamamos de coerência. Há memórias que chamamos de “autodefinidoras”. Elas provavelmente vão nos direcionar para certas direções e objetivos que buscamos em nossas vidas e vice-versa. Se não interagirem, é um problema. Em casos de doenças mentais, por exemplo. Você pode se lembrar de algo que não é você, não se encaixa na percepção que você tem sobre si. E daí você tem que, de alguma forma, viver e integrar isso na sua vida e a percepção que tem sobre ela.
BBC News Brasil – As pessoas dizem que a memória está sempre em construção, ou sempre mudando. Isso é verdade?
Conway – As memórias não podem estar sempre mudando, porque daí não teríamos consistência. Elas mudam, mas não tanto quanto se imagina. Conhecimento abstrato, conceitual, dados como “Eu fiz faculdade? Fiz” —isso não vai mudar. Coisas específicas assim não vão mudar. Só que tem que haver consistência, mas também uma flexibilidade construtiva. Você não vai se esquecer de ter trabalhado em um lugar específico, mas haverá muitos episódios relacionados àquilo que você poderá lembrar com detalhes diferentes. Ou seja, você provavelmente vai se lembrar, na sua vida, de ter trabalhado na BBC, mas vai se lembrar de muitos episódios relacionados a isso com detalhes diferentes. O importante é que haja coerência com o quadro mental que você vai pintar sobre ter trabalhado na BBC.
Outra visão com a qual não concordo muito é a de reconsolidação. É uma abordagem científica que diz que todas as vezes que você se lembra de uma memória, você muda ela. Eu acho que isso levaria a um sistema de memória muito instável. Nós somos muito estáveis, temos a necessidade e desejo de memórias consistentes.
BBC News Brasil – Por que criamos memórias de coisas que nunca aconteceram?
Conway – Às vezes são coisas que nós imaginamos que aconteceram. Talvez você tenha imaginado muito e esqueceu que era uma imaginação, e aquilo volta como uma memória. Isso acontece muito com memórias de infância. Sua mãe pode ter lhe dito: “Tínhamos um grande jardim verde e brincávamos lá, você estava sempre rindo”. E mais tarde você pode se lembrar dessa cena, sem se tocar que era uma história que sua mãe lhe contou. Ou então você pode ter imaginado algo quando criança — algo que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Você pode lembrar disso como uma memória. E isso pode ser consistente e coerente com suas crenças sobre quem você era e suas atitudes em relação ao mundo, e isso é ok.
Memória e imaginação acontecem nas mesmas redes neurológicas do nosso cérebro. Quando você não está focado ou focada em tarefas, quando você está pensando na vida, no futuro, no passado, essas grandes e complicadas redes neurológicas ficam online. Lembrar e imaginar acontecem na mesma rede.
BBC News Brasil – Então nós criamos lembranças falsas?
Conway – Não há dúvidas de que sim. Se é intencional ou não, é outra questão. Pesquisadores concordam em relação a uma coisa: ninguém se senta, pensa e cria uma memória falsa assim. Você pode conversar com alguém, imaginar algo que poderia ter acontecido, e gradualmente isso se transforma em algo que você se lembra como real.
BBC News Brasil – Qual é a diferença entre memórias a longo prazo e memórias a curto prazo, e por que lembramos de umas e não de outras? Às vezes nos esquecemos do que comemos no café da manhã.
Conway – É porque o café da manhã é algo entediante! (Risos) Mas vamos falar sério: memórias a curto prazo duram cerca de 30 segundos. Um exemplo é algo que você acabou de dizer, as exatas palavras que você disse. Memórias intermediárias, de eventos recentes, o que eu tomei no café da manhã, se passeei com o cachorro, são importantes porque nos ajudam a nos localizar no tempo e no espaço. Mas, com o tempo, você se lembra menos e menos, como o que você fez ontem, três dias atrás, uma semana, um mês atrás. E então existe uma função de retenção: você acaba se lembrando mais de eventos de grande relevância para você, como os relacionados a seus objetivos, preocupações e desejos.
BBC News – Brasil – E memórias de infância, existem?
Conway – Essa é uma questão interessante. Muitas pesquisas já foram feitas sobre isso. O cérebro está se desenvolvendo nesses períodos. Estudos mostram que os lobos frontais ainda não estão completamente desenvolvidos quando você tem vinte e poucos anos. Minha hipótese é que lembramos comparativamente pouco dos 5 aos 10 anos, e que passamos a lembrar mais na adolescência. Além disso, há muitas diferenças de pessoa para pessoa, por causa do desenvolvimento do cérebro, e diferenças culturais.
Pessoas de culturas asiáticas, por exemplo, lembram menos de detalhes de memórias como crianças. Isso porque são socializadas a lembrarem memórias que envolvem um coletivo — lembram-se de falar com a mãe ou com a avó, por exemplo, e não tanto de “eu”. Nas culturas ocidentais, somos criados para nos lembrar de coisas que nos definem como indivíduos, como “eu fiz isso”, “eu fiz aquilo”.
BBC News Brasil – Se não conseguimos nos lembrar de fatos, conseguimos nos lembrar de sentimentos dessa época?
Conway – A pergunta que temos que nos fazer é: é possível, em primeiro lugar, lembrar-se de qualquer sentimento? Quando você diz: “Senti medo, raiva” ou qualquer coisa do tipo… Era esse mesmo o caso? Você pode se lembrar de detalhes de um evento e inconscientemente e sem intenção construir a partir disso memória de como você se sentiu.
Além disso, as medidas podem mudar. Por exemplo, posso me lembrar de me sentir muito feliz jogando futebol em um campinho quando tinha 7 anos de idade. Mas a felicidade que eu senti aos 7 anos é a mesma felicidade que eu sinto hoje? O que você se lembra não corresponde, necessariamente, a como as coisas eram.
BBC News Brasil – Existem memórias coletivas?
Conway – Sim. Não tê-las é um problema. Por que que as pessoas às vezes não as têm? É uma repressão das memórias, que pode ser consequência de um problema na sociedade, em geral. São memórias importante porque provavelmente são memórias de eventos negativos. E eventos negativos transmitem mais informação que eventos positivos, são mais informativos sobre o mundo e às vezes são sobre coisas que podem ser ameaçadoras. Você se lembra de como as coisas podem dar errado para não repeti-las. Também há memórias relacionadas a gerações. Há memórias de que meus outros amigos velhos também se lembram, e isso nos conecta.
BBC News Brasil – A tecnologia de hoje em dia afeta nossa memória? Estamos terceirizando nossa memória para aplicativos e aparelhos?
Conway – Temos que lembrar que a humanidade sempre suplementou sua cognição com a tecnologia. Escrever é provavelmente nossa maior tecnologia. Sempre soubemos que nossa cognição é imperfeita, e sempre buscamos maneiras para suplementá-la. Pessoalmente, eu acho bom. Eu acho incrível. A tecnologia expande nossa memória, não o contrário.
BBC News Brasil – Podemos exercitar nossa memória para tentar melhorá-la?
Conway – Não. A memória não é um músculo. Aprender um instrumento musical, uma nova língua, uma nova área de conhecimento, tudo isso é bom. Vai te fazer mais inteligente e esperto. Pode ser bom para sua “memória de trabalho”, que é sua habilidade de brevemente manipular informação, mas não vai fazer sua memória melhorar. Vai fazer todo o conjunto funcionar bem.
Se você desistir e parar de aprender coisas novas, as coisas não irão bem. Uma das coisas que fazem uma diferença enorme é o quão bem socializamos com os outros. Fomos evoluídos para socializar, e quanto mais o fazemos, melhor nosso cérebro trabalha. Sair com amigos e familiares e interagir é a melhor coisa que você pode fazer pela sua mente e para sua memória. Socializando, você aprende coisas novas o tempo todo, aprende sobre pessoas, sobre si próprio. Socializar é um aprendizado gigante. E pessoas que permanecem dentro de seus grupos sociais sofrem menos declínio cognitivo, e isso inclui comprometer menos a memória.
BBC News Brasil – O que o Sr. diria para pessoas mais velhas sobre a memória?
Conway – Permaneçam engajados com seus círculos sociais, seus netos, amigos, colegas. É a coisa que mais pode fazer a diferença. Não há dúvidas de que a memória deteriora. Manter todo o sistema mental vivo trará benefícios. Socializar é bom para a memória, para o pensamento e a imaginação. É bom para tudo.
BBC News Brasil – O que acontece quando ficamos com Alzheimer? O Sr. acredita que um dia haverá uma cura?
Conway – As pessoas ficam com placas entre os neurônios que entopem os caminhos neurais do cérebro. Isso leva ao déficit de memória. Explicar como isso acontece são conjecturas… Há muitas pesquisas, e uma teoria, acredite se quiser, é que há uma relação com a bactéria que causa a gengivite. É só uma teoria recente.
Com Alzheimer, não podemos construir mais memórias. Os pacientes se esquecem de grandes partes de suas vidas. Você, por exemplo, poderia não se lembrar mais de que trabalhou para a BBC. Você perde grandes partes da sua vida que te ajudam a te definir como pessoa. Acredito que encontraremos uma cura, mas o caminho é longo, e não será fácil ou simples.
BBC News Brasil – A medicina e a ciência poderão melhorar nossa memória no futuro?
Conway – Certamente. Quando entendermos exatamente como o cérebro funciona, poderemos manipulá-lo. O grande problema é que temos que pensar como o conhecimento é representado no cérebro. Há neurônios que formam nosso cérebro, mas também há proteínas. Tem que haver um tipo de código genético que represente o conhecimento que pode ser lido e levado à consciência. A questão é: como o conhecimento é representado? Não são genes. É uma ação que está criando proteínas, que formam alguns aspectos desse código que estamos imaginando. Quando entendermos isso, poderemos intervir em prol da nossa memória.
BBC News Brasil – Nossa memória tem limites?
Conway – Bom, há uma visão que diz que sim, que a memória tem uma capacidade limitada. Outra visão, que é a minha, é a de que não é nossa memória que é limitada, é nossa habilidade para acessar nossas memórias que é limitada. As memórias estão armezanadas nas conexões neurais do nosso cérebro, ou nas moléculos geradas pelos neurônios, e em princípio poderiam representar tudo que experimentamos em nossas vidas. A pergunta é: podemos acessá-las? A resposta é que provavelmente não, pelo menos não conscientemente. É o que eu acho, mas a maioria dos outros pesquisadores especialistas em memória me acharia louco.
BBC News Brasil – E quem acredita que a memória tem limites, acha que acontece o quê com nossas recordações?
Conway – Que elas são perdidas, esquecidas, sobrescritas.
BBC News Brasil – E por que o Sr. não acha que isso acontece?
Conway – Porque acredito que elas nos formam, formam nossa personalidade, nossa interação com os outros, os amigos que escolhemos, e que não somos necessariamente conscientes disso.
Fonte: Terra Saúde