Gabigol fica, o futebol brasileiro retém um ídolo e o Flamengo reafirma sua pujança ao se tornar um raro exemplo de time bem-sucedido que não foi desmontado imediatamente após um ciclo de conquistas. Por outro lado, a ordem internacional do jogo, a percepção de abismo competitivo entre Brasil e Europa, termina por se reafirmar. A negociação que conduziu à assinatura de um contrato de cinco anos entre Gabigol e o Flamengo é riquíssima em abordagens.
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O episódio termina com o final que o Flamengo queria, assim como é fato que Gabigol esperou até os dias finais da janela europeia por uma oportunidade na elite global do jogo. O fato de tal oportunidade não ter surgido, ao menos num superclube global, mostra o quanto é difícil romper a percepção de que o futebol atual tem dois mundos. Não houve artilharia em dois anos seguidos de Campeonato Brasileiro, com 43 gols somados entre elas, tampouco artilharia de Libertadores com dois gols decisivos numa final de antologia contra o River Plate, que fossem capazes de convencer um dos gigantes mundiais a apostar no atacante do Flamengo.
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Aparentemente, ainda há uma necessidade de selo de aprovação: é difícil convencer o mercado a apagar da memória uma experiência europeia frustrante. E Gabigol teve duas, na Internazionale e no Benfica. Ocorre que, quando as viveu, ele tinha entre 20 e 21 anos. Futebol é jogado por seres humanos: há contextos, relações interpessoais, clima, vivências e, o principal, a maturidade que não chega para todos na mesma idade. Mas nada disso altera a percepção sobre ele na elite europeia. E, como ficou claro, nem mesmo o enorme impacto de Gabigol nos cenários brasileiro e sul-americano foi suficiente.
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O Flamengo está celebrando várias vitórias. Ao manter Jorge Jesus, Bruno Henrique e agora Gabigol, fez mais do que evitar o desmanche que marcou muitos dos últimos campeões do país, como o Cruzeiro de 2014 e o Corinthians de 2015 e 2017. Este Flamengo trouxe novas opções de elenco e criou a sensação de chegar a 2020 com um grupo ainda mais forte.
Espera até o fim
Há outras vitórias, como a frieza como estratégia de negociação. Mas, acima de tudo, a reafirmação do time como força econômica acima dos padrões do continente. Em outros tempos, ainda que a elite europeia não absorvesse Gabigol, seu destino natural seria um mercado alternativo capaz de pagar altos salários, fosse o leste europeu, a China ou o Oriente Médio. Há poucas temporadas, seria impensável um clube do Brasil desembolsar, ainda que em parcelas, 16,5 milhões de euros mais salários superiores a R$ 1,2 milhão por mês. Sinal de que estruturar os gigantes brasileiros pode conduzir à retenção de jogadores com um nível antes inacessível. E melhorar nosso campeonato.
Mas e o campo? Há garantias de que Gabigol repetirá o desempenho de 2019? A resposta é não, simplesmente porque o futebol não oferece garantias. Ao assinar por cinco anos, Gabigol tem a chance de responder a uma interrogação que cercou sua carreira: o desafio da constância, da continuidade em alto nível. Talvez tenha chegado a tal maturidade citada acima. O fato é que, antes da passagem por Santos e Flamengo em 2018 e 2019, Gabigol carregava o rótulo de jogador com menos fome do que talento. Houve quem relacionasse suas duas últimas temporadas bem-sucedidas a contratos curtos que o obrigavam a se provar. Agora, escorado num compromisso longo, é natural observar se o apetite competitivo irá se manter. O próprio Flamengo, nas conversas íntimas entre seus dirigentes, discutiu o tema. Mas não havia como deixar de apostar na manutenção de um jogador tão simbólico.
Há razões para acreditar que Gabigol dará respostas positivas. E elas vão além de maturidade. A começar pelas condições que fizeram aflorar o melhor de seu futebol no ano passado: o comando de Jorge Jesus e a formação com dois atacantes no 4-4-2 montado pelo português. Gabigol se livrou da amarra de optar entre ser um ponta ou um centroavante, ganhou mobilidade, imprevisibilidade, a chance de buscar diagonais, atacar espaços, exibir-se como ótimo finalizador e participar ativamente do jogo.
E o contexto deste Flamengo de 2020 também pode ajudá-lo. Chegou Pedro, um homem de área que permite alternativas táticas. Chegou Pedro Rocha, em tese um jogador de mais movimentação ofensiva. Acima de tudo, ampliou-se a competição interna. Junto com ela, aumentou demais a expectativa sobre Gabigol, mas criou-se em torno dele um ambiente de carinho da arquibancada. Condições ideais para que renda o máximo que é capaz.
É lógico que a sensação de disparidade entre o Flamengo e os demais concorrentes se reforça e este não é um bom sintoma. Mas a manutenção de um ídolo é algo que o futebol brasileiro raramente vinha experimentando. Sob este aspecto, todos saem ganhando.
Fonte: O Globo