Os novos dados sobre a epidemia de HIV no Brasil trouxeram algumas boas notícias — e um dado preocupante.
Os casos de Aids, a síndrome causada por este vírus, estão caindo, assim como as mortes pela doença. O ano passado também foi o primeiro em que o número de novos casos de HIV notificados diminuiu ligeiramente, após uma década de aumentos.
Mas um índice foge desta tendência no mais recente Boletim Epidemiológico HIV/Aids, divulgado anualmente pelo Ministério da Saúde: em vez de cair, o número de grávidas diagnosticadas continua a aumentar.
Entre 2008 e 2018, o índice passou de 2,1 para 2,9 casos para cada mil nascidos vivos. Houve um aumento de 36% no total de casos notificados por ano neste período.
No entanto, o governo federal e médicos ouvidos pela BBC News Brasil dizem que este crescimento não é de todo uma má notícia.
Esaú João, coordenador do programa de prevenção materno-fetal de HIV do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HSE), no Rio de Janeiro, explica que, desde 2010, passou a ser obrigatório o teste do vírus para gestantes no acompanhamento pré-natal, na primeira consulta e no último trimestre.
O infectologista afirma que isso contribuiu para aumentar o índice de grávidas diagnosticadas com HIV. “A partir daí, elas passam a se tratar e, com resultados positivos, têm outras gestações”, diz João.
A avaliação vai ao encontro a dados do Ministério da Saúde. O número de exames para HIV e sífilis aplicados pela Rede Cegonha, um programa nacional voltado para gestantes, aumentou em mais de nove vezes. Em 2012, foram realizados 369 mil testes no país. Neste ano, diz a pasta, já são mais de 3,5 milhões.
Rico Vasconcelos, infectologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o aumento do índice de detecção do HIV em gestantes, como reflexo da ampliação do diagnóstico, é um passo importante para erradicar a chamada transmissão vertical do vírus, entre a mãe e o bebê.
“Estamos conseguindo encontrar essas mulheres, então, o crescimento desta taxa num primeiro momento é uma coisa boa. Se conseguirmos achar todas e fazer um pré-natal adequado, o esperado é que a transmissão vertical caia”, afirma Vasconcelos.
É o que vem ocorrendo, segundo dados do governo. Os casos de Aids entre crianças com menos de 5 anos, um dos índices usados para avaliar a frequência da transmissão vertical, diminuiu em quase pela metade desde 2010: passou de 3,9 pra 1,9 casos entre 100 mil habitantes.
Para evitar esse tipo de transmissão, a mãe precisa tomar medicamentos para reduzir a quantidade do vírus no organismo até esta carga ser considerada indetectável. Também é preciso tratar outras infecções, como sífilis, que favorecem a transmissão do vírus. Além disso, o bebê deve nascer por cesariana e não ser amamentado.
O ideal é a mulher engravidar já usando os medicamentos. Quanto mais precocemente isso for feito, maior é a chance de transmissão chegar quase a zero.
É importante fazer o teste também no fim da gestação, porque, como apontam médicos ouvidos pela reportagem, há casos em que uma mulher pega o vírus durante a gravidez, ao se relacionar com um novo parceiro.
Mesmo se o diagnóstico ocorrer próximo do parto, os médicos ainda podem tomar medidas para reduzir o risco da transmissão vertical.
Mais mulheres engravidam já sabendo que têm o vírus
Os dados do Ministério da Saúde também apontam ter ocorrido uma mudança de comportamento entre gestantes com HIV. O índice de mulheres que engravidam sabendo que têm o vírus superou a taxa de mulheres que são diagnosticadas no pré-natal.
Em 2010, 36% sabiam que tinham o vírus, enquanto 54% conheceram seu status na gravidez. A proporção se inverteu desde então: em 2018, 61% engravidaram cientes do HIV e 31% foram diagnosticadas no pré-natal.
Gerson Pereira, diretor do departamento de doenças de condições crônicas e infecções sexualmente transmissíveis do Ministério da Saúde, atribui isso a uma melhoria do tratamento, o que fez mulheres perceberem que podem engravidar sem transmitir o vírus ao bebê nem ao parceiro.
“Graças aos medicamentos de hoje, ter HIV passou a ser considerado doença crônica, como diabetes. As grávidas entendem que, mesmo com o vírus, não vão morrer e poderão ver seus filhos crescerem”, afirma Pereira.
Vasconcelos, da USP, diz que essa percepção entre mulheres com HIV pode ter um impacto sobre a mudança detectada pelo governo, mas prefere ter cautela.
“Sem dúvida, quando é divulgado que é possível ter filhos, aumenta o número de gestantes com HIV que engravidam de forma planejada. Mas não sei se é o fator principal, porque isso não é muito divulgado. A gente não vê no intervalo da novela chamadas do tipo: ‘Você, mulher com HIV, sabe que pode ter filho?’.”
Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, afirma que a leitura dos dados pelo Ministério da Saúde é apenas uma das possíveis e que vê em seu cotidiano a influência de outros fatores.
“Também podemos interpretar como um sinal de que muitas mulheres não sabem se proteger. Muitas vezes, elas simplesmente sabem que têm HIV, não se tratam e continuam a ter filhos, porque engravidam sem planejar ou querem dar um filho a um novo parceiro”, afirma Sprinz.
Quem são e onde estão as gestantes com HIV
Mas quem são essas mulheres? Os dados oficiais mostram que a maioria das gestantes diagnosticadas com HIV desde o ano 2000 eram pretas ou pardas (61,7%), tinham entre 20 e 29 anos (53,9%) e eram analfabetas ou tinham até 8ª série incompleta (42,4%).
“A epidemia no Brasil evoluiu muito para o lado da população desfavorecida economicamente e que muitas vezes vive à margem da sociedade. Estas mulheres sofrem todo tipo de violência, o que faz com que a questão do HIV não seja tão importante na vida delas”, diz João, do HSE.
As condições socioeconômicas impactam diretamente o risco de pegar HIV. “Doenças transmissíveis em geral são doenças relacionadas à pobreza, porque estas pessoas têm menos acesso a medidas de prevenção. Se têm baixa escolaridade, também têm menos acesso a informações sobre como se prevenir”, afirma Pereira, do Ministério da Saúde.
O boletim do governo federal mostra que a maioria das gestantes com HIV viviam nas regiões Sudeste (38,1%) e Sul (30%). No entanto, os maiores aumentos de novos casos nos últimos dez anos ocorreram nas regiões Norte (87,5%) e Nordeste (118,1%).
Para médicos ouvidos pela BBC News Brasil, o crescimento expressivo nestas regiões reforça a explicação de que o aumento de casos no país é resultado da ampliação de exames.
“Estas duas regiões eram onde havia os maiores índices de subnotificação de HIV, e estão tentando resolver esse problema com a oferta de testes rápidos e capacitação de profissionais. Esse crescimento é positivo, porque, se não fossem diagnosticadas, estas mulheres morreriam de Aids, mas uma hora isso tem que começar a cair”, diz Vasconcelos, da USP.
Manoella Alves, infectologista do Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, que é referência para atendimento de gestantes com HIV no Rio Grande do Norte, diz que o aumento do diagnóstico se deve à ampliação da testagem, mas ressalta que é preciso fazer uma avaliação cuidadosa.
“Números de HIV são complexos de entender, porque são influenciados por escolaridade, classe social, gênero. O que houve foi o aumento do número de mulheres diagnosticadas nestas regiões e, infelizmente, isso aconteceu na gravidez, já que é neste momento que o serviço de saúde chega de forma mais ativa a elas”, diz Alves.
A infectologista ressalta que as regiões Sul e Sudeste ainda apresentam as maiores taxas de HIV entre gestantes. “É preciso analisar se há no Norte e Nordeste uma cobertura de exames de HIV similar ao de Sul e Sudeste.”
RS tem o maior índice do país
Segundo o boletim anual, o Rio Grande do Sul é o Estado com o maior índice de grávidas com HIV desde 2001.
No ano passado, foram 9,2 novos casos a cada mil nascidos vivos, três vezes a média nacional.
A taxa está caindo desde 2015, quando atingiu o pico de 9,5 casos entre mil nascidos vivos, mas ainda é de longe a mais alta do país: em segundo lugar, Santa Catarina teve 6,1 casos a cada mil nascidos vivos.
O quadro é ainda mais grave em Porto Alegre, onde houve 20,2 casos entre mil nascidos vivos em 2018, a maior taxsa entre todas as capitais brasileiras.
Historicamente, a epidemia de HIV é de forma geral mais grave no Rio Grande do Sul em comparação com a maioria dos outros Estados brasileiros.
O Rio Grande do Sul tem o terceiro maior número acumulado de diagnósticos de HIV notificados no país desde o ano 2000. Também foi o terceiro com a maior taxa de detecção de Aids em 2018, com 27,2 casos por 100 mil habitantes, apesar do índice ter caído 39,3% em dez anos.
Houve uma queda semelhante, de 34,5%, nas mortes por Aids, neste período, mas, com 7,8 óbitos por 100 mil habitantes em 2018, o Rio Grande do Sul supera todos os outros Estados neste aspecto.
Os fatores por trás da epidemia gaúcha
Não há um consenso sobre o motivo de taxas tão elevadas. Especialistas indicam que alguns fatores contribuem simultaneamente para isso.
Pereira, do Ministério da Saúde, diz que a epidemia de HIV no Rio Grande do Sul — e na região Sul como um todo — apresenta características diferentes de outras partes do país.
A epidemia no Brasil é classificada como concentrada, porque há grupos sociais considerados mais vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens, travestis, transexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas. Entre eles, há uma prevalência do vírus acima da média nacional, de 0,5%.
Estudos com gestantes e parturientes, usados para avaliar a prevalência do vírus em uma população, indicam uma taxa de 2% no Rio Grande do Sul, onde a epidemia tende a ser generalizada.
“No Rio Grande do Sul, é uma epidemia mais heterossexual. Também foi mais comum no Estado o uso de drogas injetáveis, que funciona como uma ponte para o vírus para a população em geral”, afirma Pereira.
Sprinz, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que tem sido observada no Estado uma frequência maior do HIV do subtipo C, sua variante mais comum no mundo e que geralmente é transmitida em relações heterossexuais.
“Isso indica que uma parte população que não é normalmente considerada vulnerável corre um risco maior do que é esperado. Mas, por não se achar vulnerável, nem pensa em HIV e não se protege, o que leva a mais casos”, afirma Sprinz.
O infectologista Ronaldo Hallal, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, diz que falhas nas políticas de saúde pública também contribuíram para agravar a epidemia gaúcha.
“A cobertura das unidades de atenção primária é mais baixa em Porto Alegre do que em outros centros urbanos e, com isso, há menos acesso à prevenção e ao diagnóstico. E o Rio Grande do Sul não aplicou recursos destinados pelo governo federal para o combate ao HIV tão rapidamente quanto outros Estados”, afirma Hallal.
No entanto, diz o infectologista, este é apenas um de vários aspectos. “A situação que temos hoje é fruto de uma soma de fatores, e não dá para atribuir a só um deles. O que está claro é que a epidemia tem características diferentes aqui e demanda respostas diferentes do que no restante do país.”
A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul diz estar ciente do problema e afirma que vem tomando medidas, como oferecer a testagem rápida de HIV em todos os municípios e ampliar de 83% para 99,5% a disponibilidade do exame em maternidades nos últimos cinco anos.
“Também estamos trabalhando para descobrir as razões que levam a estes índices. Temos algumas hipóteses, e pesquisas estão sendo feitas”, afirma Ana Lúcia Baggio, coordenadora da política de infecções sexualmente transmissíveis/Aids da secretaria.
“Esses dados nos preocupam, mas o mais importante é que estamos fazendo ações que estão dando resultado. Nossas taxas vêm caindo lentamente, mas estão caindo.”
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Fonte: Terra Saúde