Com uma taxa de incidência de Covid-19 que chegou em 2020 a quase 12% entre jogadores e jogadoras ? número semelhante ao dos profissionais da saúde e bem maior do que outras ligas, como Dinamarca (0,5%) e Qatar (4%) ?, o futebol paulista deveria ser totalmente paralisado ou realizado numa bolha sanitária isolada. Essa é a conclusão de Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do estudo acadêmico que analisou os testes de mais de quatro mil jogadores de 122 times, que disputaram oito torneios no estado no ano passado (o estudo ainda não foi revisado por pares). Gualano não considera o protocolo da Federação Paulista de Futebol (FPF) falho dentro do ambiente esportivo, mas não totalmente seguro num cenário de descontrole total da pandemia do coronavírus.

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A FPF, que ainda negocia a retomada do futebol, paralisado desde o dia 11, afirmou em nota que “do ponto de vista médico e científico, a comparação com outros países/ligas e setores é completamente descabida e desinforma as pessoas?. Reiterou também que o “diagnóstico precoce por meio dos testes levou ao rápido isolamento desses indivíduos e evitou a disseminação exponencial do vírus?. A entidade, no entanto, reconhece o momento atual e defende a concentração no modelo de “bolha? em ambiente controlado.

Por que a taxa percentual de Covid-19 em jogadores do futebol paulista é preocupante (mais de 500 testes PCR positivos)?

É um número muito alto se compararmos com outras ligas que fizeram protocolos semelhantes. A taxa na Alemanha, por exemplo, é de 0,5%. A federação diz que não podemos comparar, mas não estamos comparando maçã com laranja, estamos comparando futebol com futebol. A incidência foi maior entre os atletas (11,7%) do que entre o estafe (7%). Mas os casos moderados e graves apareceram entre os funcionários, com um óbito, por serem mais velhos e alguns estarem em grupos de risco.

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Houve um descontrole de casos também no futebol?

Sete dos 122 times testados tiveram 20 ou mais jogadores com testes positivos. Dezenove deles tiveram mais de dez casos positivos. E houve um único time com 36 casos positivos no total, sendo 31 deles num único mês. Isso é um surto e indica falta de controle do ambiente.

Isso quer dizer que o ambiente esportivo é perigoso?

O protocolo da Federação Paulista é semelhante ao da Bundesliga. Hoje já se sabe que a transmissão no campo de jogo e treino, a chamada contaminação cruzada, é pequena nesses ambientes. Mas isso funcionava bem em comunidades onde a pandemia fosse mais controlada. Defender o protocolo não é cientificamente plausível diante dos dados.

Onde está o problema?

O problema é a comunidade, o ambiente externo. A principal hipótese é que as infecções estão acontecendo fora desse ambiente e nos deslocamentos. A maioria dos deslocamentos é feita de ônibus e gera aglomerações, em paradas ou nos locais para comer. Estamos falando de times que não são de elite, há uma outra realidade, como se desloca, como controla. Não temos rastreamento de contato amplo fora do ambiente esportivo. Assim os atletas e o estafe funcionam como vetores: se infectam e podem infectar familiares, amigos, conhecidos.

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Qual o risco desses deslocamentos para fora do estado?

Volta Redonda, por exemplo, recebeu jogos (Corinthians e Palmeiras disputaram jogos do Paulista no Estádio Raulino de Oliveira), mas não era uma bolha. Até pode vir a ser, mas não foi feito para os jogos. Assim, a cidade foi exposta e os jogadores foram expostos durante esse deslocamento. O risco aumentou.

Qual o papel dos atletas nisso?

Os protocolos não dão conta totalmente da vida dos atletas durante 24 horas. No deslocamento para casa e clube, na alimentação, na vida noturna. A responsabilidade social tem sido pequena por parte de toda a sociedade. A pandemia é uma condição coletiva, só se resolve com o coletivo. Não adiantam os cuidados só dentro das quatro linhas.

E o que deve ser feito?

O futebol não é o culpado pelo descontrole da pandemia. Mas ele faz parte da comunidade. Tem surtos e contágios exponenciais. Ele não pode se isentar da responsabilidade, como nenhum outro setor. Não vejo outra saída que não passe pela bolha sanitária ou pela paralisação. Os dados estão aí e eles deviam nortear as decisões. Sabemos que há vários interesses econômicos, mas eles indicam um caminho. Podem ser protocolos mais seguros ou a paralisação quando necessária.

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Bolha tipo a da NBA?

A da NBA foi muito bem feita, com 100% de eficácia. Teve furo, mas as medidas eram bem estabelecidas e havia punições para esses casos. A bolha só funciona se o isolamento de todos for total. No futebol, tem de ser sem torcida, com o estafe de grupo de risco fora, é necessário levar a questão econômica em consideração. Mas a partir do momento que os envolvidos voltam para casa, isso não é bolha, ela foi furada. E sem rastreio e teste sequer sabemos a taxa secundária de ataque da infecção.

Por que é tão importante continuar com a vigilância epidemiológica este ano?

O nosso estudo fez uma retrospectiva de 2020. Ainda assim pode estar subestimado, pois só coletamos os dados dos laboratórios vinculados à Federação Paulista e dos testes PCR. Não coletamos dados de testes de sorologia para saber a prevalência. Não tivemos acesso a testes que foram feitos por laboratórios para os jogos da CBF. O número pode ser maior. Mas precisamos estar atentos para 2021, pois quem nunca teve Covid-19 tem seis vezes mais chances de pegar do que quem já teve contato com o vírus. É importante conhecer o cenário para determinar futuros protocolos.

E o que se sabe sobre os efeitos da Covid-19 nos jogadores depois de um ano de pandemia?

Estamos coletando os dados de alguns atletas que se infectaram ano passado. Em parceria com a FPF e numa coalizão com instituições públicas e privadas, vamos fazer uma avaliação física e psicológica com exames sofisticados para entender os efeitos. A ideia é expandir para outros esportes. Sabemos que em 2020 a sintomatologia, em geral, foi muito leve nos atletas. Mas não sabemos ainda como será com as novas variantes.